Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

A grande confusão na arena política brasileira nos faz quase indiferentes ao que se passa mundo afora. Aqui somos invadidos diariamente por notícias de falcatruas, rasteiras e acusações mútuas no seio das classes dominantes. Há uma falta total de debate sobre projetos, direções e caminhos para enfrentar os problemas de hoje e construir o amanhã. Há um perigoso esgarçamento do valor e sentido estratégico da própria democracia, com perda de referências éticas que cimentam a nossa diversidade e tornam possível a vida em comunidade. Enquanto isto, as mazelas do mundo dominado pelos negócios acima de tudo aparecem com toda a sua força nos milhares de refugiados e migrantes em busca de um lugar para viver. Foi chocante a foto da criança morta na praia, um ser humano descartável como milhões e até bilhões neste mundo submetido à lógica da globalização econômico-financeira. Não é só no Brasil que fazem falta estadistas de envergadura moral, grandeza política e legitimidade diante dos desafios de resgatar a dignidade humana jogada pelo ralo. Em um passado não tão distante, indiferença e intolerância de tal tamanho diante do drama humano gerou guerras mundiais devastadoras.
Por sinal, onde está a ONU diante do drama dos migrantes e refugiados? É evidente o fracasso da governança mundial. Há muito mais atenção às volatilidades das bolsas de valores diante dos sinais de crise na China do que com os milhões de refugiados de todo tipo pelo mundo. ONU, G-7, G-20, UE, Brics, tudo que pode ser sinal de multilateralismo está mostrando incapacidade de grandeza diante de uma crise humanitária de grandes proporções. Descartam-se seres humanos para dar atenção a negócios e manter posições estratégicas nas disputas globais pelo controle de recursos naturais e mercados. Alimentam-se guerras ou elas são deixadas à sua própria carnificina em nome de interesses maiores de disputas hegemônicas. É muito cinismo! O princípio estabelecido na base da Declaração Universal dos Direitos Humanos – espécie de embrião de uma Constituição para a governança do mundo -, de que todos nascemos livres e iguais em direitos, está sendo afogado nas águas do Mediterrâneo, na esteira da crise no Oriente Médio e na África.
A nossa crise política e econômica não pode ser desculpa para darmos as costas ao mundo. Somos parte dele, contribuímos para que seja assim, por interesse ou omissão. Tentar mostrar que somos um bom lugar para investimentos, como nosso ministro da Fazenda fez na reunião do G-20, na Turquia, é ignorar que são exatamente os investimentos em busca de acumulação sem limites a causa última por detrás da desconstrução de sociedades inteiras e expulsão de milhões de pessoas, obrigadas a migrar e buscar asilo. Aliás, aqui no nosso quintal, a gente faz de conta de que não temos nada a ver com migrantes cada vez mais numerosos da África, do Haiti e os milhares de invisíveis bolivianos.
Claro que os problemas a enfrentar não são só o de migrantes e refugiados. Eles são a ponto do iceberg que nossos líderes tentam minimizar e pensam que podem manobrar os seus navios diante de uma tragédia evidente. Na parte menos visível da crise, estão a montante desigualdade social pelo mundo, o produtivismo e consumismo destrutivo que não atendem a todos, a mudança climática. Os migrantes e refugiados de algum modo sintetizam tudo isto. Estamos diante de uma civilização em crise, que acumula riqueza e luxo de um lado, miséria e morte de outro, que valoriza o consumo individual e nega direitos de igualdade à maioria.
Como ativista da cidadania e militante por “outro mundo”, reconheço que, apesar de termos criado o Fórum Social Mundial, perdemos o sonho e ousadia no momento em que mais gente praticamente nega a legitimidade do mundo que a globalização gerou e continua reproduzindo. Deixamos de ser um brado de esperança para milhões e refluímos aos nossos lugares. Faltou-nos imaginação, criatividade e vontade até para avançar nas águas turvas e revoltas de uma globalização mergulhada nas suas enormes contradições. Parece que optamos por um “salve-se quem puder”, quando o momento era de avançar mesmo com o risco de errar muito. Agora, perdemos até capacidade convocatória da cidadania para pensar e agir.
É difícil, sem dúvida, mas uma tarefa necessária. Os e as descartáveis tem sonhos, tem ideias, tem energia. Precisamos nos inspirar em sua resistência hercúlea diante dos desafios para sobreviver, buscando lugares minimamente mais seguros, mas enfrentando todas as barreiras, da discriminação pura e simples por serem diferentes até a indiferença diante do drama visto como de outros, da responsabilidade de outros e não questão que nos diz respeito como humanidade inteira. O que fazer, realmente, não sei. Quero, porém, juntar-me a todas e todos que fazem a mesma questão. Afinal, impasses humanitários assim foram superados, em última análise, por gente comum, por cidadãs e cidadãos que decidiram agir e não delegar, gente que gestou imaginários, projetos e até lideranças capazes para transformar as adversas condições históricas.
Isto vale para o momento que vive o mundo. Mas vale para nós aqui no Brasil. Precisamos sair do curral que nossas elites nos botaram. Soltemos a ousadia de ser e praticar a cidadania! Assim agindo, faremos um Brasil melhor, um mundo melhor. Refundemos o país e, com isto, ajudemos a refundar um mundo onde vale a pena viver. Uma baliza ética e política fundamental na direção que tomarmos deve ser o inconformismo com qualquer forma de descarte de gente e de não cuidado com o nosso planeta, como um comum para todas e todos, sem discriminações.

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