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Resistir e mudar: um desafio estratégico para a cidadania brasileira

Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Na conjuntura de um governo que não esconde sua aposta no caos e na possibilidade de liderar uma solução autoritária e fascista, em meio das ameaças humanitárias devastadoras da pandemia da Covid-19, como coletivos de cidadania ativa precisamos estar atentos e não esperar acontecer para ver como fica. Literalmente, os abutres políticos estão na espreita, apostando no quanto pior é melhor e mais alimento para a sua pantagruélica fome de violência e cadáveres. São escandalosas e uma grande afronta democrática as sistemáticas manifestações dos bolsonaristas contra a Constituição e a democracia, com apoio explícito de seu chefe encastelado no Palácio do Planalto. Até quando vamos deixar isto acontecer?
Para o que fazer político, as análises de conjuntura são como o alimento do dia a dia. Mas insuficientes se não sinalizadas por visões e até apostas estratégicas do que a gente busca a partir do aqui e agora, do movimento das adversidades e das possibilidades contidas nas contradições que movem a história no seu se fazer, sobre as quais as nossas vontades e desejos também contam. É difícil? Sem dúvida! Mas viver plenamente é enfrentar e conviver com tal dilema. Conforta e muito saber que se trata de um dilema compartido, que acaba nos aproximando de correntes de opiniões e vontades de muitas outras e outros, com quem se fortalecer mutuamente nesta busca de superação constante. Mas temos que ir atrás para encontrar estes coletivos, porque não vão cair automaticamente sobre nossas cabeças. Eu, por exemplo, escrevo crônicas políticas movido pela busca de parceiros e parceiras com quem compartilhar e confrontar as minhas ideias no processo de construção da mais radical democracia ecossocial possível, nas conjunturas que nunca a gente escolhe, mas nas quais vamos levando a vida.
Feitas as preliminares para deixar bem claro de onde eu falo – no caso escrevo -, gostaria de ir direto ao ponto: como combinar a resistência democrática, que o momento difícil impõe como uma necessidade inadiável, com, ao mesmo tempo, reinventar a própria democracia como método de transformação do poder, da economia e da própria sociedade? Nos termos em que coloco a questão parece que lido com um paradoxo. Na verdade, considero que precisamos salvar estrategicamente a democracia de baixíssima intensidade que temos como condição indispensável no processo de reinventá-la e radicalizá-la. Será mais difícil disputar uma democracia com capacidade de transformação sem o mínimo de institucionalidade democrática que reconheça o direito de igualdade na liberdade, com a participação na disputa entre diferentes e contraditórios como sua razão de ser, sua essencialidade política.
Vou destacar a importância da questão democrática para nós, do Brasil, sob as ameaças do governo do capitão com pendores fascistas. A sua vitória eleitoral não justifica as afrontas à institucionalidade que penosamente conquistamos com a Constituição de 1988. Claro, já perdemos muito, particularmente em direitos fundamentais e, sobretudo, no rumo democratizador nela embutido, que, infelizmente, não prosperou. Mas mais vale uma democracia frágil que uma ditadura, cuja única lógica é de mais e mais poder discricionário. Estamos nadando em águas turvas e perigosas, com ameaças diárias aos fundamentos mesmos de uma condição democrática de convivência de opostos e divergentes. O “bando” bolsonarista e seu chefe, messiânico para ele, é a volta de uma ditadura de fato e do AI-5, isto como apenas o começo das trevas políticas repressivas. Defender a democracia é, neste sentido, uma condição sine qua non, pois nunca existiu ditadura que não seja dura, violenta, de negação e morte. Estamos diante de uma ameaça real. A hora de agir é agora.
Sem dúvida, existe a questão do como. Como juntar forças divergentes e opostas, mas que comungam o valor do bem comum democrático? Além do mais, forças que sentem a ameaça logo aí? Ou seja, o que nos falta? Tem duas novas condições a levar em conta em pleno enfrentamento da pandemia Covid-19, algo totalmente novo para a maioria de nós: 1) o isolamento como forma de cuidado coletivo com a saúde, nossa e dos demais; e 2) a consciência coletiva de dimensões planetárias sobre a incapacidade de prover o essencial para a vida e a saúde do atual sistema econômico e financeiro globalizado, que nos domina, e sua insustentabilidade que torna inviável uma simples retomada econômica de antes da pandemia. Repetir a socialmente excludente economia, racista e machista, geradora de desigualdades e destruidora da natureza é como aceitar a barbárie como futuro possível.  Enfim, o desafio é reinventar nosso ativismo cidadão em plena pandemia, tanto para garantir a democracia ameaçada, como para, com base nela, nos reinventar social, cultural, política e economicamente, respeitando e regenerando em sua integridade ecológica nosso belo e lindo Planeta Terra.
Tarefa difícil, mas não impossível. Nesta crônica vou me limitar a identificar algumas possibilidades de ativismo que se revelaram em plena pandemia. Já estamos nos reinventando como coletivos de cidadania, pois o isolamento é físico e não exatamente social. Mesmo confinados em nossas casas, estamos descobrindo como somos dependentes umas e uns de outras e outros, de como a solidariedade é condição do próprio viver, assim como a centralidade do cuidado como princípio organizador da qualidade de vida para todo mundo. Ou seja, vivíamos uma “normalidade” que encobria aspectos essenciais da vida coletiva. Mais, descobrimos o quanto de “isolamento social prático” constituíam o dia a dia de tal normalidade, onde estávamos juntos sem estar, sem nos ver e sem nos cuidar coletivamente. Formávamos aglomerados no cotidiano, sem laços efetivos fora o fato de estarmos apinhado no ônibus ou no metrô, nos ignorando mutuamente.
Como fazer valer a tomada de consciência dos nossos vínculos com territórios humanos concretos, da interdependência, convivência e co-responsabilidade, sabendo que não passa de estreita visão ideológica a saída individual? Afinal, vivemos aqui e agora, com muitas e muitos, num mesmo território como nosso bem comum, nosso endereço natural e social, com suas enormes potencialidades por trás de limitações reais a enfrentar conjuntamente. Como usar a descoberta de que, como humanidade, queiramos ou não, compartimos o mesmo destino, dependemos da integridade do planeta para viver? Não temos para onde fugir da provável ruptura do equilíbrio ecossocial, como a mudança climática e com a mudança no metabolismo ecológica que libera vírus destruidores. Por mais promessas de progresso científico, não temos no horizonte novos planetas para colonizar. É aqui ou…? Ninguém sabe exatamente, mas é bem crível a possibilidade de estarmos nos destruindo como humanidade no modo como vivemos hoje.
No meu ponto de vista como analista/ativista cidadão, abre-se uma potente alternativa de mudança exatamente agora quando a ficha caiu para grandes maiorias entre nós, no Brasil, na Região e no mundo, e estamos coletivamente nos sentindo ameaçados, tanto pela pandemia como pelo próprio modelo civilizatório destrutivo que nos “governa”. Bem, esta minha afirmação não vale para aquela minoria que se beneficia do que temos e que considera a maioria – toda a humanidade que não cabe aí – o estorvo a eliminar e, assim, poder concretizar seus desejos e modos de viver.
A alternativa é o imaginário que pode ser construído e virar força mobilizadora pró uma transformação democrática ecossocial de tudo que temos por aí. Movimentos de cidadania irresistíveis de mudança podem e devem ser construídos a partir dos locais, dos territórios. Não existe uma solução homogênea. Ela, necessariamente, será diversa, pluridiversa, pois o Planeta é diverso e contem múltiplas diversidades a serem valorizadas para o nosso bem viver. Mas, antes de tudo, precisamos imaginar, sonhar um mundo assim, transformar isto tudo em forças de mobilização. O desafio é fazer desde os nossos refúgios de isolamento. Praticamente, temos as redes digitais para desde aqui e agora agir. Ativismo digital? É possível? Num certo sentido, já estamos praticando. Conseguimos organizar manifestações de apoio e agradecimento às estratégicas e dedicadas equipes de saúde neste contexto de pandemia. Fizemos grandes manifestações culturais de forma digital, um dos potentes “cimentos” na construção de sujeitos coletivos, blocos de força de cidadania – como Gramsci nos ensina – indispensáveis para qualquer transformação. Aliás, nós no Brasil estamos organizando manifestações coletivas nas cidades de “fora Bolsonaro” mesmo isolados. Creio que estamos aprendendo a ocupar o espaço público com barulho próprio de cidadania instituinte e constituinte. O caminho e o método estão apontados. Engajemo-nos com toda a criatividade, humor e energia próprios de cidadania que constrói esculachando o poder de plantão que virou mais problema do que solução.
Rio, 11 de maio de 2019

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