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Orçamento: após a tempestade, a bonança?*

Por Nathalie Beghin, economista, integrante do Conselho de Governança do Ibase e do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). 

O governo Bolsonaro foi tão devastador na violação de direitos que, mais do que nunca, faz-se necessário documentar e divulgar a profundidade e a amplitude dessa verdadeira operação de destruição das instituições públicas federais. Foi o que fizemos, no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), quando analisamos os gastos orçamentários dos últimos quatro anos, em nove áreas: saúde, educação, direito à cidade, meio ambiente, indígenas, quilombolas, igualdade racial, mulheres e crianças e adolescentes. No relatório, intitulado “Depois do Desmonte”, evidenciamos o gigantesco processo de desestruturação deliberadamente implementado pela gestão Bolsonaro. Felizmente, o desejo de reconstruir o país anima a ampla aliança que se formou em torno do presidente Lula e ares de esperança sopram no Brasil.

 
A morte, a fome e o desmatamento em detrimento da vida
Um dos indicadores que expressa a perversidade do governo Bolsonaro é que apesar das mortes por Covid-19, da fome, da pobreza, do desemprego e do desmatamento, em 2022, o país apresentou superávit primário de R$ 54 bilhões, o que não acontecia desde 2013. Ou seja, quem pagou a conta foram as pessoas mais afetadas pelas consequências nefastas da política de desmonte do governo passado.

O que se depreende da análise de quatro anos de governo Bolsonaro é um quadro devastador: todas as áreas, com algumas poucas exceções, perderam recursos em termos reais. Sequer a recuperação das perdas inflacionárias foi garantida. Ou seja, as medidas de “austeridade” conseguiram ser mais severas que uma das regras fiscais mais rígidas do mundo, que é a Emenda Constitucional 95/2016, popularmente conhecida como “teto de gastos”.

A saúde, descontados os recursos específicos para o enfrentamento da Covid-19, perdeu R$ 12 bilhões em quatro anos, o que é muito grave para uma área historicamente subfinanciada. Os recursos gastos caíram de R$ 157 bilhões, em 2019, para R$ 145 bi, em 2022. A mortalidade pelo Sars-Cov-2 só não foi maior porque estados e municípios cumpriram sua parte no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) tanto no tratamento como na prevenção à doença. Mas assim mesmo, perderam a vida mais de 700 mil pessoas, grande parte delas de maneira desnecessária.

Com efeito, em 2021, quando a mortalidade por Covid-19 explodiu, o governo federal reduziu drasticamente as despesas para o enfrentamento da pandemia: em 2020 foram gastos R$ 637 bilhões e, no ano seguinte, R$ 165 bilhões, uma queda de 74% quando as mortes mais do que dobraram entre 2020 e 2021, passando de 202 mil para 411 mil, respectivamente.

Na educação a perda foi de R$ 4 bilhões, entre 2019 e 2022, atingindo as instituições de ensino superior, mas, também, a educação infantil e a educação de jovens e adultos. Destaque-se que nenhum centavo foi direcionado às escolas em virtude do isolamento social decorrente da Covid-19. O que é inaceitável, pois o governo Bolsonaro deixou de gastar R$ 159 bilhões que haviam sido autorizados pelo Congresso Nacional para a Covid-19. O cenário só não foi mais dramático em decorrência da ampliação de recursos entre 2020 e 2022 na educação básica, oriundos da aprovação do novo Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

Na área ambiental não foi diferente: o ministério do Meio Ambiente viu seu orçamento encolher 17%: em 2019 foram gastos com a área R$ 3,3 bilhões e, em 2022, somente R$ 2,7 bilhões. Essa é uma das principais causas da explosão do desmatamento na gestão Bolsonaro.

Nos demais setores, não foi diferente. Os recursos destinados às políticas de igualdade racial, quilombolas, mulheres e crianças e adolescentes foram diminuindo substancialmente. No caso dos povos indígenas, por exemplo, o orçamento da Funai sofreu queda de 15% na execução financeira real, passando de R$ 754 milhões para parcos R$ 640 milhões, entre 2019 e 2022, a despeito do crescimento populacional indígena no período. Se em 2010, o orçamento per capita anual da Funai era R$ 899 por indígena, em 2022, esse valor despencou para R$ 400 por indígena.

O desmonte como ação deliberada

Confirma-se o cenário de desmonte articulado em torno de quatro movimentos. O primeiro deles é o de desestruturação do executivo federal e sua entrega para forças privatizantes ou fundamentalistas. Pudemos observar isso com o desfinanciamento das políticas públicas, a insistência na reforma administrativa voltada para o encolhimento do Estado, nas privatizações das estatais e nas tentativas de outras privatizações e nas medidas de implementação de parcerias com o setor privado. Elas chegaram até a área ambiental, com a iniciativa Adote um Parque que passa para o setor empresarial a conservação de parques nacionais.

O segundo movimento é o de eliminação física das pessoas, comunidades e povos que não interessam ao projeto fascista e sua base política. São os empobrecidos, mulheres, negros, indígenas, quilombolas, adolescentes e jovens periféricos, adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, entre outros. Não é por outra razão, por exemplo, que a Fundação Nacional do Índio (Funai) se transformou em uma organização que opera contra os povos indígenas como mostramos na nossa publicação “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro

A expressiva drenagem de recursos orçamentários para alimentar as eleições dos aliados (assim como as presidenciais) constitui-se em mais um movimento. A parceria com o presidente da Câmara, Arthur Lira, resultou na criação do chamado orçamento secreto, que gastou mais de R$ 30 bilhões entre 2020 e 2022, quando foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Esses recursos equivalem a 10 vezes o orçamento anual do ministério do Meio Ambiente.

Por fim, o quarto movimento é o de incompetência devido a equipes totalmente despreparadas para os cargos que ocupavam. A expressão mais emblemática talvez seja a do ministro da Saúde, general Eduardo Pazzuelo, que, em outubro de 2020, sem qualquer embaraço, declarou em evento publico, “eu nem sabia o que era o SUS”.

Um respiro para 2023

É esse cenário de terra arrasada que a equipe da aliança política formada em torno do recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva encontrou no final de 2022. Felizmente, o desejo de reconstruir o país anima grande parte do funcionalismo público. Esse desejo também está presente entre representantes de organizações e movimentos sociais que lutaram arduamente pela democracia nestes últimos quatro anos e que agora podem participar das políticas públicas graças a reconstrução e ampliação dos mecanismos de participação social – conselhos, conferências e interlocuções específicas nos ministérios, entre outros.

Foram de três ordens os avanços implementados pelo governo Lula nesses primeiros meses de sua gestão: financeiros, institucionais e simbólicos.

Do ponto de vista financeiro, uma negociação liderada por Lula junto ao Congresso Nacional, em torno da chamada PEC da Transição, resultou na Emenda Constitucional 126/2022. Recursos adicionais foram disponibilizados para 2023, direta e indiretamente. Indiretamente, porque programas importantes, como o Bolsa Família, ficaram fora do teto de gastos, o que possibilita que o programa amplie sua cobertura e o valor dos benefícios. E, diretamente, porque o Parlamento aumentou o orçamento deste ano em R$ 145 bilhões. Não é muito diante do enorme déficit social que caracteriza o país, mas é um começo para retomar as políticas públicas.

Institucionalmente, o governo Lula recriou ministérios, como o do Planejamento, Trabalho, Previdência, Cultura, Esporte, Mulheres, Igualdade Racial, entre outros, e estabeleceu como prioridade a participação social. Isso mostra que seu governo entende que a realidade da sociedade brasileira é complexa e requer respostas à altura, céleres e participativas, com equipes especializadas e dedicadas a cada um desses temas. Essa é uma das condições necessárias para desenhar, implementar e avaliar políticas públicas efetivas.

Do ponto de vista simbólico, além da iniciativa de subir a rampa, no dia da posse, com pessoas que expressavam a diversidade da população brasileira – crianças, jovens, negros, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, indígenas, idosos – e de receber a faixa presidencial das mãos de uma trabalhadora mulher e negra, o presidente da República nomeou 11 ministros/as negros/as e 11 ministras mulheres. Ainda criou o ministério dos Povos Indígenas e apontou como ministra uma indígena, Sonia Guajajara.

Essas medidas alimentam a esperança de um Brasil mais justo, mas é sabido que os desafios não são de pequena monta. O governo é resultado de uma ampla aliança que envolve diversos tipos de interesses, por vezes divergentes. O Congresso, conservador e com fortes segmentos clientelistas, tensionará continuamente o Executivo federal, pressionando pela liberação de emendas parlamentares ou nomeação de apadrinhados nos ministérios.

Soma-se a isso, a predominância de uma visão econômica, mesmo entre aqueles que se dizem progressistas, que favorece o equilíbrio fiscal em detrimento da vida e do bem-estar da população. São exemplos disso: cortes de gastos públicos, como os R$ 50 bilhões recentemente anunciados pelo Ministério da Fazenda; manutenção de elevada taxa de juros para combater uma inflação que na atualidade nada tem a ver com a demanda aquecida; propostas de reforma tributária que privilegiam a eficiência do sistema em detrimento de sua progressividade; e, propostas de regras fiscais restritivas ao invés da ousadia de defender o planejamento de longo prazo das despesas que, de forma responsável, realize progressivamente os direitos humanos.

O que importa neste momento é que a construção da democracia retomou seu curso e que é graças a isso que poderemos opinar, concordar ou discordar sem medo de retaliações.

(*) Publicado originalmente no site Outras Palavras


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