Manifestação “Ele Não”, 29/10/2018. Foto: Arquivo Ibase

Cândido Grzybowski

Sociólogo, do Ibase

Na reta final do segundo turno eleitoral de 2018, reconheço que a complexidade e as contradições das visões e motivações, ideias, valores, emoções e paixões, que mobilizam grandes correntes em disputa, exigem uma profunda revisão de concepções e análises sobre a nossa realidade, uma sociedade autoritária e segregadora, racista, machista, patrimonialista e violenta, dos privilégios acima dos direitos. Nossa tenra e ainda jovem democracia está longe de ser um valor compartilhado, um princípio vivido e um bem político comum a ser preservado, acima de nossas diferenças, opções e disputas, como modo de construir uma sociedade de bem viver para todas e todos.
Estamos vendo que o discurso violento, das soluções pela força, armada inclusive, da intolerância, ódio e exclusão de quem pensa diferente, tem sonhos e desejos diversos do nosso, pratica outra religião ou não tem religião, encontra acolhida em nosso seio. O “nós versus os outros” parece se impor, ao invés de juntos na vibrante diversidade  de práticas e de modos de sermos gente, parte de uma mesma sociedade, compartindo uma mesma vida humana e um mesmo pedaço de chão do planeta comum em que a humanidade se organiza. A constatação mais incrível é como tal discurso vindo de setores fascistas das classes dominantes vira força agregadora de multidões no meio popular dos sofridos “batalhadores”, parte de quem mais sofre com as desigualdades, injustiças e a negação de direitos básicos de cidadania nesse nosso Brasil.
Que direita é esta e como ela adquiriu tal capacidade política, ao ponto de ameaçar as poucas, mas valiosas, conquistas democráticas que tivemos como povo na luta contra a ditadura? A resposta não é simples. Vai exigir um esforço coletivo de revisão e análise, de crítica e autocrítica, especialmente da centro direita democrática e das correntes que se identificam com a esquerda democrática entre nós. Enfim, de forma mais abrangente, tarefa prioritária de todos e todas que abraçam os princípios e valores da democracia. Agenda para anos vindouros, independentemente do resultado da disputa eleitoral de domingo próximo. Claro que o resultado importa. Mas, precisamos reconhecer, a nossa democracia se revelou frágil no processo dos últimos anos e especialmente no momento que estamos vivendo. Ela está precisando de cuidados especiais, antes que seja tarde.
Na verdade, o que estamos vendo entre nós, aqui no Brasil, não é diferente, em sua essência, de uma onda de barbarização que tomou conta do mundo. Estamos sendo assaltados, como humanidade, pela globalização capitalista das grandes corporações a serviço da vergonhosa destruição do planeta e da acumulação de riquezas nas mãos de 1%, contra os demais 99%. Afinal, o fascismo volta a ameaçar o mundo todo. E as disputas geopolíticas, com crise ecossocial descontrolada e fracasso de todos os pactos multilaterais, só o alimentam. Será que brotarão, de dentro dos diferentes povos, movimentos planetários, com inspiração e forças democráticas renovadas para barrar a barbárie?
Em todo caso, aqui no Brasil, nós temos o nosso imediato para enfrentar hoje e amanhã, sem hesitar um minuto sequer. É com cidadania ativa na rua que poderemos resistir e criar alternativas, num esforço que nem sabemos quanta ousadia de pensamento e ação precisaremos, quanta energia e determinação teremos que demonstrar, quantas derrotas sofreremos sem saber quando e como a democracia voltará a ser hegemônica entre nós. Acho que esta campanha eleitoral já nos dá algumas pistas. Claro, será melhor ou, ao menos, mais fácil se adquirimos força cidadã suficiente para “empatar” a onda da direita ideológica que se forjou na confusão de nossa crise política e institucional. O certo é que estamos diante de forças de direita fascista diferente da direita fisiológica que vinha dando governabilidade na nossa democracia de “conciliação”, tacitamente aceita até pela esquerda. Além do mais, foi uma direita que se alimentou cobrando um alto pedágio sobre os recursos públicos, gerando o grande câncer corruptor da política bem comum. A direita fisiológica do MDB e do PSDB está ainda contabilizando a enorme derrota que sofreu no primeiro turno das eleições deste ano.
Hoje, precisamos nos reconstruir como cidadania nova e como esquerda nova, capaz de lutar por democracia ecossocial transformadora das destrutivas e injustas estruturas econômicas, políticas e sociais que temos. Mas só avançaremos se soubermos enfrentar uma renovada direita de feições fascistas, que sabe manipular discursos e usar novas mídias e redes sociais para disputar sentimentos e pensamentos, criando apoios amplos em setores emergentes e, mesmo, entre os “batalhadores” sem direitos, que vivem na precariedade. Nossa tarefa é disputar hegemonia de valores, de ética e de direitos, de sentidos e de direções de viver coletivamente, de respeito e dignidade humana para todas e todos, sem discriminações. Tarefa política, sem dúvida, mas a ser feita no seio da sociedade civil, com ativismo cidadão e muito debate, educação, esforço de nos buscar uns e umas aos outros e outras, numa tarefa coletiva de reconstrução do viver junto.

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