Por Ibase
A diretora do Ibase Moema Miranda participou, como palestrante, da conferência People and Planet First: the Imperative to Change Course, em Roma. O evento foi organizado pelo Pontifical Council for Justice and Peace, do Vaticano, e pelo CIDSE, organismo internacional que reúne as agências católicas de fomento de projetos sociais. O evento tem como objetivo debater questões abordadas na Encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum, do Papa Francisco, divulgada semana passada. Moema participou do painel Climate change or changing structure of injustice, ao lado da jornalista canadense Naomi Klein e da teóloga francesa Cécile Renouard. Abaixo o texto que norteou sua apresentação:
Por Moema Miranda, antropóloga e diretora do Ibase
Na América Latina vivemos nos últimos anos um processo intenso de criminalização dos movimentos, pastorais e organizações que lutam por justiça social e ambiental. O número de lideranças indígenas assassinadas ou condenadas judicialmente, por exemplo, aumentou enormemente. São líderes que defendem seus territórios contra a ação destrutiva do modelo que gera a morte, contra o qual o Papa se pronuncia nesta bela Encíclica. Chico Mendes e Irmã Dorothy são alguns dos mais reconhecidos mártires nesta guerra sem tréguas. São líderes, povos e organizações que, além de defender seus territórios, suas culturas e modos de vida defendem alternativas profundas para toda a sociedade, tais como a proposta de Buen Viver, Suma Kamay, dos povos andinos! A Encíclica Laudado Si entra em ressoancia e “fala” contemplando e considerando estas vozes, que foram caladas, caluniadas, chamadas de “inimigas do progresso”, acusadas de sonhadoras e irrealistas. “Des-isola”, aproxima e valoriza os que estávamos cansados e muitas vezes nos sentido sós.
A articulação entre justiça social e ambiental é fundamental na Encíclica, explícita em diversos momentos, especialmente quando afirma que “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental” (§139). Vale lembrar que no Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, onde mais de 150 mil ativistas, militantes e defensores dos direitos humanos e ambientais se reuniram, os povos indígenas das América afirmaram: vivemos não um somatório de crises (ambiental, financeira, social, etc), mas uma “crise civilizatória”!
A Encíclica conecta não apenas as questões da justiça social e ambiental, o que já é muito relevante. Ao denunciar que a Terra e os pobres são vítimas de um mesmo modelo, ensina que “tudo está estreitamente interligado no mundo (§16)”! A defesa da justiça socioambiental é parte e se interliga com a necessidade de uma nova espiritualidade e cultura de religação amorosa e fraterna entre a humanidade, as outras espécies que compartilham conosco a vida e com nossa casa comum. Casa que, como dizia São Francisco, tem um único Senhor. O senhorio de Deus abre a porta para nossa “fraternidade universal”. Rompe o isolamento a que presunçosamente o ser humano se condenou. A Encíclica reconhece que a Terra “fala”: ela se manifesta de infinitas formas. Negar a voz da Terra é parte da estratégia de dominação que sempre cala a voz d@s dominad@s: sejam as mulheres no sistema patriarcal, acusadas de excessivamente sentimentais e pouco racionais; sejam os povos africanos e amerídios, cuja “alma” foi negada pelos dominadores europeus. A tod@s os que tiveram sua voz silenciada na luta por justiça social e ambiental, o Papa “escuta”. Escuta, reconhece, valoriza: os movimentos ecologistas, sociais; os cientistas; os filósofos. Assim, valoriza a organização social em defesa de outras formas de relação econômica e social!
Finalmente, é essencial reconhecer, como disse Roberto Malvezzi, um dos líderes da Comissão Pastoral da Terra no Brasil, que este é o primeiro documento de um Papa a expressar uma visão sistêmica, holística. A Encíclica rompe uma tradição dualista milenar, herdada da cultura grega e reinterpretada por tantos pensadores cristãos: a lógica das duas cidades, de um mundo imerso em pecado. Esta ruptura epistemológica tem um valor inestimável. Abre as portas para um diálogo – onde reconhecendo as diferenças – podemos ser respeitosos e fraternos com as culturas tradicionais, indígenas, quilombolas e tantas outras, reconhecidas e valorizadas pelo Papa Francisco na Laudato Si!
A Encíclica é clara em relação à necessidade de mudança do “sistema” e não apenas de padrões individuais de comportamento: “É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos” (§ 27). Fala explicitamente da necessidade de “decrescimento” do consumo e da responsabilidade dos países do Norte com a crise socioambiental eo aquecimento global, bem como denuncia as “falsas soluções”, implementadas por empresas e governos. A isto tudo, aplaudimos com entusiasmo. Além disto, identifica a necessidade de uma mudança nos padrões de desejo de consumo hegemônicos, que envolvem amplas parcelas das populações dos países “emergentes”. Repetimos muitas vezes que este padrão de consumo e desperdício é, em si, incompatível com o sistema vivo da Terra. Torna-se urgente uma alternativa sistêmica. A Igreja assumindo este desafio, se coloca a caminho, em diálogo com tod@s, empenhada em construir alternativas profundas, baseada na ecologia integral.
Laudato Sí!!
Os obstáculos que enfrentaremos serão, sem dúvida, muitos e de diferentes naturezas: econômicos, culturais, políticos e ideológicos.Nos últimos anos, a balança de pagamentos da maioria dos países latino-americanos dependeu dos preços positivos das commodities agrícolas e minerais nos mercados internacionais. Como Alberto Acosta, Eduardo Gudynas entre outros autores latino-americanos já indicaram, o risco maior destas economias é de aumento dos níveis de extração e exportação, no momento de baixa dos preços, visando garantir a renda da qual dependem. Os níveis de conflito nos territórios onde a extração mineral e de produtos do agronegócio se realiza tende a ser mais acirrada e programas estruturais como a reforma agrária ou a demarcação das terras indígenas tornam-se mais improváveis
No Brasil começa a se desenhar um programa de “ajuste fiscal” que pode representar ainda maior transferência de recursos para o sistema financeiro, fragilizando as condições dos governos de desenvolverem políticas públicas participativas e de corte efetivamente alternativo. Os programas que garantiram renda maior para parcelas mais empobrecidas de nossa população correm sérios riscos.
O Papa alerta que soluções ligados a maior privatização só podem degradar ainda mais as condições de vida da população bem como as condições ambientais. Mas também no Brasil tivemos experiências que demonstram a possibilidade de adesão da população a novas práticas, coerentes com o espírito da Laudato Sí. Chamo atenção, por exemplo, para o Programa Um Milhão de Cisternas. Desenvolvido em toda a região do semiárido brasileiro a partir das pastorais sociais, dos grupos de base, do trabalho local, expressa uma nova consciência ecológica e social: a possibilidade exitosa de “convivência com o semiárido”. Esta perspectiva supera o “combate à seca” que marcou a realidade nacional por muitas décadas. As imagens de nordestinos retirantes, de população morta de fome e sede, dos animais morrendo fez parte da realidade e do imaginário brasileiro por muitos anos. Canções, livros e peças de teatro popular denunciavam esta situação tão extrema. A partir de uma nova visão, com atuação nas bases, começou-se a desenvolver um amplo programa de trabalho que tinha dimensões econômicas, culturais e políticas: aprender a conviver com o semiárido; construir pequenas cisternas descentralizadas, em lugar dos poços privatizados pelos “coronéis”. Desenvolver uma cultura de uso, re-uso e preservação da água; desenvolver a agricultura familiar orgânica e a criação de animais compatíveis com os níveis pluviométricos da região representou uma mudança profunda na realidade. Estas iniciativas tornaram-se política pública a partir de 2002. Como resultado, na grande seca de 2013 e 2014 não houve fome, nem mortes, nem migração.
Propostas alternativas sistêmicas ao mundo dominado pelo capital terão que emergir das mil flores que florescem apesar e em resistência à ordem hegemônica. Espalhadas em diversos locais, estimuladas pela Igreja dos pobres, apoiadas por alguns políticos comprometidos, por ONGs, militantes, ambientalistas, cientistas. São as práticas concretas de resistência desenvolvidas por muitos e muitos povos indígenas, quilombolas mas também em novas práticas culturais nas cidades, com jovens urbanos mais conscientes dos limites do planeta e mais abertos à re-conexão de tudo com tudo. Estas iniciativas e práticas, agora amparadas e apoiadas pelo Papa, que tem um potencial enorme de manter a esperança, de fortalecer práticas sociais solidárias, de gerar nova consciência. Ao serem reconhecidas, valorizadas, apoiadas podem contribuir firmemente para a emergência de um mundo mais justo, mais harmônico. Um mundo de justiça e de paz.
Elas são, portanto, as respostas concretas, as vozes proféticas que clamam nos desertos, nas florestas, no agreste. Unindo aos líderes como o Papa Francisco, aos movimentos sociais altermundialistas, a atuação de entidades internacionais anunciam o mundo novo que há de vir!
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