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Haverá um mundo para o conhecimento e estamos provando isso todos os dias*

Wania Sant’Anna

Presidenta do Conselho de Governança do Ibase, historiadora e pesquisadora de relações raciais e de gênero

O Brasil poderia ser, mas não é, um celeiro de conhecimento. Por aqui, devemos admitir que os agentes políticos e intelectuais do país decidiram que essa possibilidade não era algo que merecesse o investimento de seu tempo, pensamento e, mais importante, trabalho.  Isso tem sido assim desde sempre, mas escancarou como “trato” da vida pública com a formação da República (1889).  Existiria, então, uma preguiça perversa, um certo acomodamento das “coisas”, uma tendência entediante de se imaginar que está em curso um algo melhor, um algo para ser aprimorado na vã compreensão de que, no fundo, se está fazendo algo quando, na realidade, o realizado é imperfeito desde a sua concepção.  E esse é um traço das desigualdades e exclusões na sociedade brasileira – um plural de mal feitos.

E esse legado de mal feitos se perpetua no viver da população negras e em suas comunidades. Não se espera que essa maioria da população brasileira, formal e declaradamente 56%, seja dotada de cidadania, direitos e esperança de um futuro melhor. Para essa parcela da população o que se espera destinar são as sobras de algo mal feito e mal acabado. Impressiona o quanto o conhecimento produzido pela humanidade seja tão descaradamente negado aos afro-brasileiros e isso diz muito sobre o quanto, por aqui, o conhecimento é algo sem fôlego, sem perenidade e sem inovação.

A inovação, diga-se de passagem, é um patamar de ideias e realizações que exige conhecimento fertilizado, conhecimento vicejante, conhecimento utilizado, conhecimento continuado.  Quando se nega à população a experiência de consumo do conhecimento e da criatividade, o resultado não pode ser positivo, ao contrário, impõem-se o limbo, o desalento e uma ignorância solenemente soberba.

Neste ano de 2022, a lei de cotas nas universidades públicas federais completa 10 anos.  A Lei Nº 12.711/2012 é passo posterior à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que consagrou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, e cotas, para o ingresso de estudantes autodeclarados pretos e pardos nas instituições públicas de ensino superior e, também, nas instituições federais de ensino técnico de nível médio.

Aliás, a decisão unânime do STF, em 26 de abril de 2012, tem um histórico importante que jamais deve ser esquecido em função do aprendizado político e intelectual que lhe deu sustentação. Por quase uma década, organizações do movimento negro, ativistas, advogados, acadêmicos negros e alguns poucos acadêmicos brancos negociaram e empreenderam estratégias legais para que esse resultado fosse alcançado. Impossível esquecer, por exemplo, o fato de o movimento negro ter acionado o recurso de Amicus Curie para garantir que a voz de defesa do movimento negro e seus ativistas fosse ouvida e considerada no transcorrer do processo legal.

Impossível negar o quão estratégico foi ter utilizado o princípio da autonomia universitária, também previsto em nossa Constituição, para pautar esse debate nos conselhos universitários – instância máxima de governança das instituições públicas de ensino superior. Por tudo isso, e não por acaso, à época da decisão do STF, quase uma centena de universidades já havia implantado algum tipo de ação afirmativa de seleção e ingresso cujo público-alvo também incluía estudantes autodeclarados pretos e pardos.  Essas experiências de pressão e debate público sobre as cotas para negros nas universidades, insisto, foi, ao mesmo tempo, uma jornada política e intelectual.

Olhando em retrospectiva, é surpreendente a dimensão profunda que pesava contra as políticas de ação afirmativa para ingresso de pessoas autodeclaradas pretas e pardas no ensino superior público àquela época.  Como ativista do movimento negro e publicamente ligada à essa luta, percebia como inadmissível que se pudesse interditar a decisão de jovens negros e negras expandirem seus conhecimentos e, assim, entregar ao país o seu melhor.  Era incompreensível que essa juventude, ou negros e negras não tão jovens, fossem considerados incapazes de demonstrar à nação o quanto eles estavam dispostos a mudar as suas vidas, e a vida de suas famílias, através do conhecimento e saberes que compreendíamos ser a principal razão de existência das universidades públicas do país.

Enfim, havia, de fato, algo de muito tacanho em não reconhecer que para estudantes negros e negras, sobretudo aqueles que estudaram em escolas públicas, o ingresso na universidade pública constituía uma materialidade irrefutável de retorno financeiro que o Estado havia feito na sua formação até aquele momento.  Àquela época, transparecia como uma enorme ignorância deslegitimar o sacrifício objetivo das famílias negras para manter seus filhos na escola e, mais importante, valorizar a formação e a educação como estratégias legítimas de superação de infindável conjunto de vulnerabilidade social e econômica que lhes assolam o cotidiano.

O rechaço às políticas de ação afirmativa para negros no ingresso às universidades públicas era perverso e, ao mesmo tempo, uma lembrança viva do ordenamento jurídico que negou à população escravizada o acesso à escola e à educação formal.  Diante desse cenário, era impossível não dizer que os contrários às políticas de ação afirmativa estavam, no fundo, alimentando o que há de pior na sociedade brasileira: o racismo, a discriminação racial e o preconceito contra as pessoas negras e, de quebra, contribuindo para que o conhecimento fosse deslavadamente sequestrado.

Desta perspectiva é inegável que as organizações do movimento negro e seus ativistas estavam bem mais comprometidos com o destino da nação que aquelas pessoas e instituições que interpretavam as universidades públicas como um bem privado.  Afinal, é muito espantoso que se admitisse homens negros como operários da construção civil ficando os alicerces dos prédios de uma instalação pública de ensino superior sem que, jamais, fosse aventada a hipótese de seus filhos e filhas frequentarem as salas de aula dessas edificações, utilizarem os seus banheiros e desfrutarem das bibliotecas que eles construíram metro por metro.

Mas, para registro e legado histórico é que o movimento negro com seu ativismo e perseverança política foi capaz de romper o privilégio que, por quase dois séculos, esteve reservado a uma camada social que, objetivamente, jamais se interessou em perceber o conhecimento como patrimônio de nação, uma elite dirigente que jamais concebeu negros e negras exercendo, profissionalmente, a medicina, a engenharia, a arquitetura, a advocacia, a pedagogia.

Ou seja, uma elite dirigente incapaz de perceber a população negra como consumidora, produtora e transmissora dos conhecimentos forjados no âmbito das universidades.  E é mesmo terrível conviver em uma sociedade incapaz de perceber que a expansão do conhecimento e o terreno da inovação só é possível quando mais pessoas, mais seres humanos, se conectam e são convocadas a produzir conhecimento e inovação.

Nesse ano de 2022, em função de um parágrafo previsto na Lei Nº 12.711/2012, está instaurado no Congresso Nacional o debate sobre sua revisão. Sem surpresas, a lei menciona algo tão vago quanto: “no prazo de dez anos a conta da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa especial para acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”. Objetivamente, o que se impõe é o quanto a sociedade brasileira está disposta a manter o acesso ao conhecimento como um bem restrito, mas financiado por toda a população. E, indo mais além, quando iremos desistir do mal feito e do mal acabado. Afinal, os cotistas têm provado, todos os dias, que existe um mundo dentro de si para o conhecimento.

(*) artigo publicado originalmente em Haverá um mundo para o conhecimento e estamos provando isso todos os dias  – Congresso em Foco (uol.com.br)

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