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CAMINHOS E ENCRUZILHADAS: DESAFIOS E ESTRATÉGIAS PARA CONSTRUIR OUTRO SISTEMA POLÍTICO

Documento da Plataforma pela Reforma do Sistema Político traz reflexões que ajudam a analisar a atual conjuntura e pensar estratégias, que contribuam com movimentos sociais e lutas populares na construção de suas leituras e estratégias.

O ano de 2022 será desafiador. O último ano do governo Bolsonaro continuará pautando uma agenda de retrocessos, violências, retirada de direitos e ataques a nossa limitada democracia. As eleições federais e estaduais não serão fáceis e se anunciam as mais violentas da história. Tudo isso em meio à pandemia e, como se não bastasse, com a ameaça de uma guerra do fim do mundo. O país vê a cada dia aumentar o número de desempregados, de famintos, sem-teto e pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Também cresce a prática do racismo, dos casos de feminicídio e da LGBTfobia. Um cenário ainda mais violento com aqueles e aquelas que historicamente são ameaçadas pela violência diária que atinge desde territórios indígenas, quilombolas até as favelas e periferias urbanas.

Diante disso, a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político promoveu uma reunião ampliada no dia 8 de fevereiro para analisar a atual conjuntura e pensar estratégias, que embasaram a produção deste texto. Queremos, com este documento, além de situar politicamente a Plataforma, contribuir com os movimentos sociais e as lutas populares na construção de suas leituras e estratégias.

Eleições 2022

Em que cenário as eleições deste ano serão realizadas? Serão realizadas? A expectativa é que sejam contaminadas pela estratégia bolsonarista da violência, de tumultuar e deslegitimar o processo e o resultado, em caso de derrota. Para isso, Bolsonaro conta com uma estrutura armada, tanto das polícias quanto de milícias, além de parte das forças armadas e integrantes dos clubes de tiro. O discurso de ódio e a desinformação, a partir de sua militância digital e de robôs, também são armas bolsonaristas que serão usadas durante as eleições.

Em relação ao Congresso, as barganhas conquistadas pelo Centrão, além de emendas (inclusive secretas) e um fundo eleitoral volumoso (sem precedentes e sem nenhum controle) vão ser usados nas eleições para manter esta estrutura de poder, o que significa que a expectativa é de pouca “renovação” e um legislativo ainda mais conservador. Vale ressaltar que a Plataforma sempre defendeu o financiamento público de campanha, como instrumento de enfrentar as sub-representações, ter uma maior equidade no processo eleitoral e enfrentar o peso do poder econômico na política. A nossa defesa previa mudanças nos critérios de partilha do fundo eleitoral e partidário e num valor razoável. Manter os atuais critérios é privilegiar os grandes partidos e os que estão no poder e com mandatos.

Na disputa à presidência, há um entendimento de que Lula é o principal nome para derrotar Bolsonaro, ainda que seja refutado o clima de “já ganhou”, como apontam hoje as pesquisas. É preciso também ter um olhar crítico sobre o processo de construção da candidatura de Lula e sua política de alianças. Um exemplo é a provável indicação de Geraldo Alckmin para a vice-presidência. Para nós, a grande questão é com quem queremos construir a derrota de Bolsonaro e do bolsonarismo e que forças queremos fortalecer neste processo. As alianças deveriam se pautar por este olhar estratégico e não um olhar unicamente eleitoral.

Por isso, será preciso fazer a disputa eleitoral em todos os espaços, mas também buscar incidir na candidatura e no programa de governo de Lula. É necessário pautar a nossa agenda nas eleições e nas candidaturas do nosso campo, sem perder a perspectiva das lutas nas ruas e na organização popular. A Plataforma precisa fazer o tensionamento durante o processo eleitoral, mas com um olhar crítico para construir uma posição autônoma e que aponte para a construção de um outro sistema politico. Para nós, a disputa pelo programa se dá na construção da síntese política do debate de que país queremos com as lutas populares nos territórios e nas ruas.

Conjuntura

Questões estruturantes, como o racismo, o patriarcado, a LGBTfobia e a aporofobia (aversão aos pobres) seguem seu curso de violência liberada e legitimada por discursos oficiais e pela mídia tradicional. Pessoas negras continuam morrendo “de fome, de vírus e de bala”. Foram elas as principais vítimas da covid-19, do desastre econômico brasileiro e da violência policial. Durante os últimos anos, o país viu aumentar o número de feminicídios e violência de gênero, inclusive com o crescimento das agressões contra candidaturas e mandatos LGBTs, de mulheres e pessoas negras. Ao mesmo tempo, a juventude negra segue sendo encarcerada e o principal alvo dos homicídios, muitos deles cometidos pelo Estado.

No campo religioso, apesar dos vários grupos que lutam contra, há um processo de “fascistização” das igrejas e projeção de fundamentalismos, que não fica restrito ao campo pentecostal e neopentecostal. Da mesma forma, há uma aproximação muito grande das esquerdas com esse movimento, visando o processo eleitoral. Vale ressaltar que tais igrejas têm força política e utilizam suas estruturas para se colocar dentro de territórios vulnerabilizados, dando suporte assistencial para a população.

Esse cenário é ainda mais latente, se considerar o crescimento das famílias vulnerabilizadas nos últimos anos. Cerca de 15 milhões de pessoas estão desempregadas, mais de 60 milhões estão em trabalhos precarizados e mais de 30 milhões não têm onde morar. A política econômica do atual governo tem produzido uma inflação que, na prática, “tira a comida da boca do povo”. Os serviços públicos também estão sendo dilapidados e os cortes orçamentários afetam, sobretudo, as pessoas negras, pobres, indígenas, mulheres, quilombolas e comunidades tradicionais.

Na Amazônia, há um aumento de invasões das florestas e territórios indígenas. A legislação ambiental está sendo desmontada, enquanto o governo e órgãos públicos estimulam o garimpo e as invasões. Somente em terras indígenas Munduruku, nos últimos 5 anos, houve um aumento das devastações que chegou a 2000%. O resultado é o aumento da violência contra as lideranças indígenas, camponesas, quilombolas e ambientalistas, que atinge todos os biomas brasileiros. Este processo de devastação e violências que alicerçam o agronegócio e que de pop não tem nada.

Nos centros urbanos, a letalidade policial continua exterminando jovens negros e pobres. O poder das milícias também têm se expandido, acompanhado do aumento no número de armas pela população civil. A necropolítica segue sendo política de Estado, reproduzida também por governos do nosso campo. Não podemos esquecer do aumento da população em situação de rua e da fome, fruto do desmonte das políticas construídas pela luta popular no início do século.

Essa população vulnerabilizada ainda sofre ataques do Congresso e de sua agenda. Estão em pauta projetos de lei que criminalizam ainda mais o aborto. Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres tendem a ser usados como moeda de troca, sobretudo em ano eleitoral.

As cotas raciais em universidades também estão sob ameaça. Já o debate sobre segurança pública, considerando o oportunismo eleitoral, pode resultar em propostas ainda mais conservadoras e populistas, que agravem a violência e o genocídio da população negra.

O mundo do trabalho cada vez mais precarizado, quando não a exclusão pura e simples de qualquer possibilidade de acesso ao trabalho digno. Os altos índices de desemprego e informalidade, os impactos da Reforma Trabalhista, e os ataques sofridos pelo movimento sindical tornam ainda mais desafiadora a mobilização da classe trabalhadora.

Estratégias

Diante desse contexto, a Plataforma reafirma a sua estratégia, que é sua razão de existir, de pautar a sociedade sobre a necessidade de olhar o nosso sistema político do ponto de vista do poder. Numa sociedade como a nossa quem tem o poder de exercer o poder? Com isso queremos pautar o significado da democracia e que democracia queremos construir. Uma democracia anti-capitalista, anti-racista, anti-patriarcal, anti-LGBTfóbica, anti-fundamentalista, alicerçada no poder popular e com instrumentos de enfrentamento a todas as formas de discriminações e desigualdades.

Reafirmamos a necessidade de incidir no debate sobre a reforma do sistema político que temos. Acreditamos que ainda temos espaço para aprofundar algumas “conquistas” neste sistema, mesmo que seja de forma limitada. Admitimos que precisamos pensar outras institucionalidades, portanto faz todo sentido falarmos em um novo sistema político. Esta passa a ser a nossa luta estratégica: a construção de um novo sistema político que seja a síntese política das lutas populares, com seus saberes e utopias.

Faz parte da nossa estratégia o diálogo permanente com as forças políticas que se propõem a enfrentar esta conjuntura tão adversa às forças populares. Entendemos que para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo precisamos juntar forças, mas devemos olhar para um campo enorme de organizações populares que não estão organicamente nos processos que a chamada “esquerda institucionalizada” constrói. Para isso é necessário que este campo repense as suas práticas, formas organizativas e formas de lutas, assim como suas formas de construção de poder. A Plataforma se coloca neste campo político, mas entendendo que temos o grande desafio de aprofundar os nossos debates e formas de organização que apontem com a ruptura do atual sistema.

Ao mesmo tempo queremos contribuir com o debate, ainda nebuloso no nosso campo, que classifica as lutas políticas do povo negro, das mulheres, da população LGBTQIA+, quilombolas e indígenas como “pautas identitárias”, minimizando o papel que as identidades têm nas opressões estruturais de raça, gênero e classe. Para nós da Plataforma, essas são lutas essenciais para que possamos pensar um país justo, livre e soberano.

Para este ano, teremos o desafio de incidir no processo eleitoral, mas também de seguir construindo um projeto que não se esgote na eleição. Uma ação, já prevista, é a realização de uma campanha “Em Defesa da Democracia”, que será construída pelas organizações, movimentos e coletivos. Queremos debater que democracia queremos construir, que, com certeza, não é a democracia liberal e nem alicerçada no atual sistema político que existe no Brasil

Outra campanha é a reedição do “Quero me ver no poder”, promovida pela Plataforma nas eleições de 2020. O objetivo é debater a importância da representatividade na ocupação da política institucional e valorizar candidaturas que enfrentem a sub-representação de mulheres, especialmente negras, da população LGBTQIA +, das juventudes periféricas, povos indígenas, quilombolas, etc.

Internamente, a Plataforma deverá seguir com os debates sobre sua organicidade, buscando construir espaços horizontais, não hierarquizados de decisão e mobilizar as organizações para avançar no projeto para um novo sistema político. Queremos aprofundar debates que precisamos acumular mais, como por exemplo a relação entre economia e democracia, Estado plurinacional e pluriétnico, construção de um sistema político alicerçado no poder popular, entre outros.

Neste contexto, a comunicação se coloca num lugar estratégico e fundamental para dialogarmos com a sociedade e também internamente. Como facilitar processo realmente de diálogos e construção coletiva? Como disputar a sociedade através das redes sociais? Como furar as bolhas em um meio digital controlado por grandes corporações, onde o acesso à internet sequer é democrático e o direito à comunicação não é cumprido? Como dialogar com quem não está conectado no mundo virtual? Essas são algumas das questões que fazem parte do nosso debate para a definição de estratégias.

Nesse diálogo com a sociedade será fundamental expressar as propostas e valores defendidos pela Plataforma. Nesse sentido, não devemos abrir mão de pautar a pandemia e a sua condução política, falar com as pessoas que perderam entes queridos, seguir lutando em memória das vítimas do genocídio praticado no contexto da covid-19.

Fruto de processo político de anos, vamos aprovar em agosto de 2022, no encontro nacional, a versão 3 da Plataforma, que passa a ser a grande referência dos nossos debates e formulações. A versão 3 é a nossa síntese política que aponta para a construção de novas institucionalidades e de um outro sistema político.

Por fim, a construção das estratégias da Plataforma também passa pelo comprometimento das organizações de pensarem em atuações mais conjuntas, em parcerias, apoios e uma dinâmica mais participativa. Em um ano que promete ser tão difícil, caminhar de mãos dadas será fundamental!

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