Por Cândido Grzybowski, sociólogo e ex-diretor do Ibase

Dom Mauro Morelli, bispo emérito de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, completou a sua jornada entre nós, aos 88 anos, no último dia 9. Mas deixou um legado extremamente importante ao fazer uma combinação virtuosa de sua fé e ministério de bispo católico com engajamento cidadão e ação política por justiça social, mostrando como tais dimensões dão um sentido profundo ao viver. Tive a oportunidade de conviver grandes momentos com dom Mauro, desfrutar de sua amizade e construir cumplicidades políticas, participando ao seu lado, de Betinho e outros mais da formulação de estratégias da campanha contra a fome, posteriormente chamada de Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida.

Vivíamos os primeiros anos sob a “Constituição Cidadã de 1988’, com grandes conquistas institucionais de direitos iguais na diversidade, que nos apontavam outros horizontes de viver com mais justiça social. Na disputa final para a presidência na eleição de 1989, Fernando Collor venceu Lula por uma pequena margem de votos. Com desastroso início de governo, em 1991, Collor “caçador de marajás” revelou-se um corrupto. Não foi necessário muito tempo para despertar a reação, inicialmente de jovens, com grandes manifestações que tomaram conta do país pela “ética na política” e pelo impeachment de Collor. Collor foi destituído; e seu vice, Itamar Franco, assumiu em dezembro de 1992.

Lembro de todos esses episódios para situar o nascimento de um potente movimento da cidadania que implantou na esfera pública a agenda do combate à fome, à miséria e à pobreza como questão central para a democracia – movimento em que dom Mauro Morelli foi um ator relevante. Lembro que do Mauro já havia se destacado como bispo empenhado em ações por justiça social em Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, região muitas vezes marcada por chacinas e outros atos violentos contra os mais pobres.

Movimentos de cidadania ativa contra a ditadura e pela redemocratização, ao longo dos anos 1980, seguidos pela intensa mobilização no processo de formulação da nova Constituição, em 1987 e 1988; depois a primeira eleição direta pós-ditadura militar, em 1989; e o movimento pela ética na política, no início dos anos 1990; propiciaram um salto de qualidade política. E assim foi estabelecida a associação da luta por democracia e ética na política com a luta por justiça social.

Além disso, com a ECO-92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento) a agenda de luta por outro desenvolvimento ganhou relevância na sociedade brasileira.  Tais fatos políticos implantaram uma questão que perseguimos até hoje: uma democracia capaz de transformar a sociedade brasileira por mais igualdade social e sustentabilidade – uma transformação democrática ecossocial, com cuidado de gente e da natureza.

No plantar de tais raízes virtuosas no seio da sociedade, grandes figuras brasileiras se destacaram, como Herbert de Souza, e dom Mauro Morelli. Lembro aqui os dois pois essa parceria foi fundamental para tornar viável a agenda do combate à fome e à pobreza no Brasil, algo que “donos de gado e gente” teimam em impedir que seja extirpado. Lula e o Partido dos Trabalhadores também foram fundamentais ao terem formulado um programa de combate à fome como política de governo, documento que foi entregue a Itamar Franco, assim que tomou posse para o restante do mandato, após o impeachment de Collor.

Sou testemunha de dentro do Ibase, organização de cidadania criada por Betinho e seus parceiros Carlos Afonso e Marcos Arruda, no retorno ao Brasil, após anistia política. Foi em março de 1990 que eu larguei a carreira de professor universitário para me dedicar inteiramente às causas de cidadania abraçadas pelo Ibase. Dom Mauro já circulava por lá e tecia cumplicidades cidadãs com Betinho.

A popular campanha contra a fome – com nome oficial de Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida – nasceu em 1993 com dois pilares: os comitês de cidadania, que se multiplicaram aos milhares, tendo a emblemática figura de Betinho como animador público, apoiado pelo Ibase e o pelo Comitê Ideias (rede formada por profissionais de publicidade), criando peças de divulgação; e  a criação do Consea ( Conselho Nacional de Segurança Alimentar) por Itamar Franco e tendo dom Mauro como presidente – com status semelhante a um ministro de Estado – e um conjunto de representantes da sociedade civil.

Betinho encontrava tempo para participar das reuniões do Consea, mas tantas outras coisas Betinho e dom Mauro definiam nos seus encontros no Ibase. Por ter tido a oportunidade de compartilhar daqueles momentos de papos engajados de duas grandes figuras, como membro da direção do Ibase, aprendi muito sobre princípios e valores éticos, democracia intensa, ação da cidadania, direitos iguais e justiça social, a dor da fome – “fome não espera, mata”, na fala direta do Betinho. E ganhei mais um grande amigo e cidadão exemplar, dom Mauro Morelli.

Descanse em paz. Você fez a sua parte.

Foto: Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil (ANABB).

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