Funcionária do Ibase desde 1986, Antonia Rodrigues sabe como poucos sobre a história da instituição. De ajudante de cozinha à coordenadora de administração e finanças da ONG fundada por Betinho, nesta entrevista, ela conta sobre sua trajetória pessoal e profissional, desde a infância no interior do Ceará, até a vida no Rio de Janeiro.
 
Há quanto tempo está no Ibase? 
Há mais de 30 anos. Entrei no Ibase em abril de 1986.
 
Como foi a sua trajetória na instituição?
Foi uma linda e rica trajetória! Muita gente contribuiu para o meu crescimento pessoal e profissional. Conheci o Betinho em um encontro de Comunidades Eclesiais de Base.  Depois, em 1984, vim para o Rio porque casei. Ou casei para vir para o Rio… Quando minha ex-cunhada, Eurides, me disse que trabalhava no Ibase, eu fiquei muito feliz e disse: quero trabalhar com o Betinho. Então houve uma vaga para ajudante de cozinha. O meu ex-marido não queria que eu me candidatasse. Imagina a vergonha: eu era professora (curso normal), com uma trajetória na educação e, no Rio, estava trabalhando como caixa geral em um supermercado no Leblon. Ficava em um escritório confortável, com pouco trabalho e muita responsabilidade com os malotes e o cofre, aguardando o carro forte da transportadora. Mesmo assim, não tive dúvidas e aceitei a vaga de ajudante de cozinha no Ibase. Quem me entrevistou foi Leticia Cotrim que chamou o Betinho na hora. Eu quase morri de tanta emoção!  Aquela pessoa frágil e forte ao meu lado conversando comigo!  Os dois estranharam o meu interesse na vaga quando eu contei a minha rápida história resumida.  Na entrevista, eu ainda pedi para quando surgisse uma oportunidade em outro setor onde eu pudesse ser inserida, que me dessem uma chance. E assim aconteceu…  Trabalhei como ajudante de cozinha com Maria Salete, uma paraibana maravilhosa que me ensinou muito. A cozinha era um ótimo espaço de trocas e conversas da equipe.  O refeitório da casa na Rua Vicente de Souza, 29, em Botafogo, era muito agradável. A equipe se divertia enquanto almoçava ou lanchava.
No ano seguinte, em 1987, minha filha, Maira, nasceu e, por questões financeiras, eu precisei deixa-la um semestre no Ceará com a minha mãe. A Wania Santana, uma jovem pesquisadora, na época já trabalhava com a questão racial e, conversando comigo sobre a situação da minha filha, ficou inconformada. Então começou o debate sobre beneficio do auxilio creche dentro da instituição.
Em meados de 1988 surgiu uma excelente oportunidade para trabalhar com a Leticia no centro de documentação e atendimento do Ibase. Uma experiência riquíssima.  De lá fui para a equipe de comunicação para fazer recortes de jornal com algumas palavras-chave por assunto. Era um clipping com recortes de jornal para uma dupla de jornalistas alimentar uma base de dados: a Cronologia.  Esse banco de dados era muito consultado.
No inicio dos anos 90, quando o Cândido veio trabalhar no Ibase, a Leticia Cotrim sugeriu o meu nome para ser secretária dele. Ele aceitou. Era mais um grande desafio para mim mas o Cândido sempre estimulou que eu lesse e entendesse meu trabalho. Por exemplo: no cotidiano de secretária, lendo documentos do Ibase, às vezes eu não entendia o significado de algumas palavras. Quando eu perguntava, o Cândido dizia: vou trazer um dicionário de sociologia.  Vez ou outra chegavam algumas correspondências em inglês ou francês. Até o dia em que eu disse que ele precisava de uma secretária bilíngue ele me propôs estudar outra língua. Então eu estudei inglês, francês e espanhol. Nesse mesmo período conheci o Athayde Motta, na época, estagiário e, hoje, diretor do Ibase.
Em uma avaliação institucional do Ibase foi sugerida a criação do cargo de assistente da direção. O meu nome foi cotado para a função e esta foi mais uma oportunidade de conhecer o Ibase com outra lente, saber mais sobre o espaço estratégico, de decisões, sobre a equipe técnica de pesquisa. Participar como ouvinte das reuniões da direção me deu oportunidade de estar em com intelectuais que são referência em muitos temas e conhecer algumas organizações. Além dos grandes projetos e atividades. Como o volume de trabalho era muito, pedi que alguém fosse chamado para ajudar e sugeri o nome de Iris Patrícia, que tinha iniciado o trabalho no Ibase como jovem aprendiz. E assim ficamos alguns anos, trabalhando lado a lado.  Juventude e experiência se complementavam!
As avaliações sempre apontam possibilidades de mudanças internas. Em 2009, por exemplo, foi sugerida a criação de um espaço para organizar toda a parte de secretaria, acompanhamento dos convênios e contratos, além da comunicação institucional. Uma espécie de Secretaria Geral. Eu seria a coordenadora responsável. Mais uma vez, topei o desafio e criamos um “pool de secretárias” do qual fui coordenadora entre 2009 e 2017, ano em que ocorre mais uma grande mudança na instituição.
Com a saída da coordenação responsável na área administrativa financeira e a eleição do Athayde Motta e da Rita Brandão como novos diretores, fui convidada para assumir a coordenação de administração e finanças. E, na minha história, este é o maior de todos os desafios para mim. Minha formação é em pedagogia o que me fez até sugerir que eles conversassem com algumas pessoas da área de gestão para (re)avaliarem a proposta que haviam me feito.  Mas eles insistiram em mim para o cargo e assim estou vivenciando mais essa empreitada.
Nesta minha trajetória no Ibase, vi a construção de muitos projetos transformadores. Quando li a crônica do Cândido, em abril de 2017, “Ibase: um projeto, minha vida”, um filme passou em minha cabeça e formou para mim uma linda imagem com aqueles projetos e atividades realizados e que ele mencionava no texto. É emocionante ver que participei em todos, com as minhas diversas funções.
 
Onde você nasceu e cresceu?
Nasci e cresci no sertão dos Inhamuns no Ceará, hoje sertão de Crateús.  Lá participava de grupos de pastoral da Igreja. Minha formação politica foi na Igreja Católica, nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Dom Fragoso e Dom Helder Câmara foram pessoas que me trouxeram muita inspiração e compromisso.
Estudei o curso normal. Fui professora em escola municipal e também participei do programa de alfabetização de adultos (hoje EJA) e tive uma formação (na época treinamento), no final dos anos 70, com o Paulo Freire, em Fortaleza. Posso dizer que sou “Paulo Freiriana” de carteirinha.
Minha mãe era analfabeta e meu pai pouco letrado. Mas ele era um socialista nato: praticamente compartilhava tudo o que tínhamos para dividir com quem não tinha. O que por vezes era complicado, quase nos deixava com fome. No entanto, graças a minha mãe, que era uma defensora de alimentos “orgânicos”, fui criada consumindo muitos produtos produzidos pela família.  Ou de escambo.  A nossa família trocava produtos: feijão com o tio que produzia farinha e milho com tio que tinha engenho e fazia melado e rapadura.
Com a minha mãe também aprendi que as mulheres podem fazer o mesmo trabalho que os homens faziam no sertão: cavalgar, tirar leite, matar os animais para o abate, organizar time de futebol. Sim. Organizei um time de futebol com as mulheres no sertão do Ceará, andei em cavalos que só os homens podiam montar.
Agradeço àqueles princípios básicos e libertadores da minha infância/adolescência que germinaram e me transformaram nessa mulher que sou hoje: militante e defensora de movimentos como o feminismo, a agroecologia, a educação popular, o consumo sustentável, entre outros.
 
O que lhe traz prazer no trabalho que realiza? 
É saber que faço alguma ação para transformar o mundo ou o meio onde vivo. Não sou parte das empresas que visam o lucro.  No Ibase, testemunhei a construção, em parceria com muitas organizações, de diversos projetos que mudaram e transformaram a vida de inúmeras pessoas.
É um trabalho com muitos desafios, algumas crises financeiras mas de muitas alegrias e aprendizados.
 
O que você considera como sua grande conquista dentro da instituição?
Minha maior conquista é ter pessoas que acreditaram no meu trabalho, no meu compromisso e na minha responsabilidade. Além do respeito e carinho com que sou reconhecida, também fora do Ibase, por essa trajetória que vivi. Ouso dizer que o meu sobrenome é Antonia do Ibase.
Tenho uma enorme gratidão pelo Cândido Grzybowski, hoje assessor da direção, pelo aprendizado e oportunidade de crescimento pessoal e profissional que me possibilitou.
 
Você é a representante do Ibase na Abong (Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais), como você vê o espaço das ONGs hoje?
Sou do Conselho Diretor da Abong (Organizações em Defesa dos Direitos e Bens Comuns), representando a Abong Rio. Hoje, as organizações do campo da Abong estão vivendo a maior de todas as crises.  A Associação participou de todo processo para construção e aprovação das Novas Regras para o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Foi um momento de muita esperança e era pra ser uma oportunidade de acesso a financiamento, com regulamentação, mais transparência. No entanto, na crise que se acirrou, não existe financiamento. No Brasil vivemos um retrocesso de muitos direitos conquistados.
 
O que você espera para o futuro próximo?
Que o Ibase tenha sonhos e projetos, que eles sejam transformadores para seguir escrevendo uma história de resistência e de lutas, mas cheia de esperança para continuar fazendo a mudança na vida das pessoas! Como disse o Betinho “O Ibase, para ter sentido, precisa manter a dimensão do sonho”.
 
 
 
 

Tradução »