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Descolonização da Democracia Brasileira e Novos Desafios

Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
A decisão do STF de inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por empresas cria condições para  mudanças nas campanhas, na representação política e na composição das forças partidárias. Trata-se de um enorme desafio para a democracia que temos e uma grande oportunidade para a cidadania fazer valer seu poder constituinte e instituinte. Na crise em que estamos mergulhados, de onde menos se espera surgem decisões que podem moldar significativamente nosso futuro.
O financiamento eleitoral por empresas funcionou como subjugação da representação política aos seus interesses. Pelo financiamento de campanhas se buscavam vantagens econômico-financeiras junto aos eleitos, uma vez no exercício do poder executivo ou da representação nos legislativos. Considero isto uma verdadeira “colonização” da vida política em qualquer democracia. Democracia, por definição, é o modo pelo qual a cidadania constitui o poder, em sua igualdade política de um cidadão, um voto. A empresa não detém cidadania, não vota. O financiamento eleitoral das empresas transforma a disputa entre cidadãs e cidadãos em mercado, onde ganha o mais forte, aquele que levanta mais recursos. Ter mais dinheiro para a campanha significa fazer publicidade, esvaziando e inviabilizando o debate de ideias e propostas. Eleição não é marketing, é confronto de visões, valores e projetos mobilizadores da vontade cidadã num momento histórico dado.
A importância da decisão do STF tem a ver a conjuntura atual, com a fragmentação de forças e perda de legitimidade e rumo. Estamos mergulhados em uma crise política que tem no seu centro a crise de hegemonia. Ou seja, nossa crise é, sobretudo, de projeto de país, de imaginário mobilizador. Não temos partidos nem lideranças com visão e projeto para além do poder imediato. Faltam-nos propostas e debate apaixonado sobre o Brasil justo, democrático e sustentável que precisamos e que o mundo precisa. Vivemos uma espécie de vazio político no Executivo Federal e nos estados, no Congresso, na grande mídia, nas grandes instituições classistas (empresariais e sindicais), profissionais (OAB, ABI, Clube de Engenharia) e da sociedade civil (universidades, movimentos sociais, organizações de cidadania). Em grande parte, tal vazio explica a crise e a total confusão atual. Explica, também, a democracia de baixa intensidade em que estamos agora, apesar de que ser ainda a institucionalidade democrática nossa maior garantia diante dos oportunismos e dos salvadores da pátria.
Mesmo perdendo força transformadora, a democracia está operando ao menos como infraestrutura política neste momento, com instituições fundamentais revelando autonomia e grandeza política, como o Judiciário Federal, a Procuradoria Geral e o Ministério Público, a Polícia Federal. Mas basta olhar para o Congresso Nacional para a gente ver o tamanho da encrenca que nosso sistema eleitoral criou, a ajuda substancial do financiamento empresarial. Trata-se de uma federação de interesses corporativistas e fundamentalistas mais imediatos, não uma real representação cidadã da enorme diversidade brasileira. O Congresso hoje é dominado pela dispersão e desagregação partidária, com bancadas nada republicanas, com falta de líderes de envergadura ética e política, com personagens menores se sobressaindo.
Como se criou isto? Em grande parte – mas não só – devido ao financiamento eleitoral das empresas. Nossas campanhas eleitorais majoritárias são, sobretudo, disputas entre publicitários pagos a peso de ouro… com dinheiro farto de empresas aos partidos e seus candidatos. O fato a destacar é o resultado produzido: o poder corruptor do financiamento das empresas. O volume de dinheiro desiguala e vulgariza a disputa. Cada vez mais dispendiosas, as campanhas são contra partidos com propostas de mais democracia e candidatos de opinião, favorecem os que aceitam ser defensores de interesses de financiadores empresariais. Temos exemplos na formação da bancada da bala, no bloco ruralista, nos defensores da mineração. Isto tudo cria um Congresso – a casa do debate republicano e de país, por definição – com uma maioria preocupada em defender os interesses corporativos, subserviente do poder colonizador do livre mercado, das empresas que buscam assim ampliar os seus ganhos futuros, num país ainda patrimonialista como o nosso. 
A crise atual de hegemonia foi acentuada pelo enorme financiamento às campanhas eleitorais, mas não se origina nele. Ela tem a ver com o esgotamento da onda democrática que nos trouxe até aqui, em meio a grandes contradições. O fato é que a força da democracia é maior do que a força do financiamento. Mas o financiamento empresarial contamina, coloniza a política e ameaça a democracia. As forças que impulsionaram a Campanha das Diretas-Já e da Constituinte, em sua diversidade, nos deram uma bela Constituição e 30 anos com várias conquistas, fruto de suas disputas e pactos de governabilidade. O problema é que tal onda se esgotou. O Brasil é, em população, mais do que o dobro do que era na redemocratização e muito mais urbano. A base de nossa institucionalidade e as políticas, porém, não acompanharam as próprias mudanças do país. Pior, renunciamos a fazer mudanças mais substantivas no poder e na economia para enfrentar a vergonhosa desigualdade social e a destruição do enorme quinhão do Planeta Terra que nos cabe cuidar como bem comum. Avançamos em condicionalidades sociais distributivas de um desenvolvimento econômico nada sustentável, incluindo miseráveis e deserdados no consumo, mas não garantindo direitos plenos de cidadania. Nosso pobre projeto de país não passou de fazer crescer o extrativismo primário-exportador e manter a mesma matriz de desenvolvimento. Para superar a crise de hegemonia isto tudo precisa mudar. Trabalho para muitos anos, mas temos que começar aqui e agora.
Será que a decisão do STF pode ajudar e é para valer? Ao definir que é constitucionalmente ilegal o financiamento eleitoral das empresas, tal decisão ajuda muito. Resolver as questões centrais da política brasileira hoje ela não vai. Define condicionantes, limites, trilhas por onde pode andar a disputa. Mas os “colonizadores” da política estão plenamente ativos e inventivos, como sabemos. A questão é como o sistema político vai se adequar a tal situação e, sobretudo, como nós – cidadania com poder eleitoral – vamos agir. A cultura política não muda imediatamente com a definição do STF. Fazer campanha agora vai exigir, no mínimo, imaginação. Uma possibilidade é que o “mais barato” acabe trazendo os candidatos para junto dos eleitore(a)s. Outra possibilidade é que se crie uma grande pressão no Congresso para o aumento do financiamento público das campanhas através dos partidos, secundarizando a primazia cidadã. Ao menos, a prática colonizadora da política pelos nada democráticos interesses empresariais encontra agora uma barreira que a torna mais difícil.
Enfim, estamos diante de um novo cenário político, que pode impactar toda a disputa eleitoral já a partir das eleições municipais de 2016. O que se pode dizer é que aumentou a genuína incerteza, própria da disputa na democracia. Com ela, dá para a cidadania vislumbrar um poder de decisão maior. Não resolve o problema fundamental, que nenhuma reforma política até aqui ousou enfrentar: o resgate da política como bem comum, como o espaço de nos expressarmos e lutarmos democraticamente como cidadãos e cidadãs em nossa diversidade, construindo assim um país includente, participativo e sustentável. Romper com amarras patrimonialistas e colonizadoras da política é um passo inicial necessário, mas insuficiente por si só. Cabe a nós democratizar a democracia, por assim dizer.

Foto: Agência Senado
Foto: Agência Senado

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