Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
 
Tempos difíceis rondam nossa democracia, comprometendo o nosso futuro. Já estão longe aqueles anos de resistência e insurgência que nos permitiram acabar com a ditadura militar e instituir a democracia. Nosso grande feito naquele momento foi a Constituição de 1988 e a definição de uma institucionalidade potencialmente democratizadora. Agora, estamos em outro momento. Por sinal, para a maioria dos brasileiros e das brasileiras de hoje aqueles anos são apenas história. Como toda história, algo presente e vivo mesmo tendo passado. Trata-se de visões e avaliações de personagens, de forças sociais, de suas propostas e ações, dos processos que desencadearam, de significados que a eles atribuímos. Enfim, história em disputa e sempre reinterpretada, pois a linha da vida de um povo é ela mesma uma questão democrática.
O momento atual é de enfrentar o encurralamento da democracia no mundo e, particularmente, entre nós no Brasil. Estamos numa conjuntura mundial de limitação da democracia, do  cerceamento de seu poder de permanente tensionamento e busca do melhor possível nas circunstâncias dadas. Afinal, democracia substantiva é uma disputa em processo, com incertezas sobre os resultados. Mas, processo virtuoso de transformação, de conquistas com derrotas e de avanços com recuos. Afinal, direitos iguais na diversidade são um ideal e uma possibilidade em disputa, que fazem a democracia ser um espaço político de luta criativa, de busca tensionada, em movimento permanente, tendo como limites a legitimidade com alargamento da legalidade. Olhando o que se passa no mundo e aqui entre nós, a ameaça da barbárie é uma realidade possível, com toda a violência e fundamentalismos excludentes, com guerras até. Num certo sentido, é o que estamos fazendo a nosso modo aqui no Brasil, nas favelas e periferias, com povos indígenas e quilombolas, onde com violência se pratica de forma consentida o extermínio, particularmente de jovens. Isto mostra a dramaticidade da situação subalterna do Brasil no mundo que, em sua especificidade, contribui para uma onda conservadora e autoritária global, destituinte de direitos conquistados e esgarçando as democracias.
Por definição, a democracia é uma forma de radicalizar a política como espaço público e bem comum, onde diferentes sujeitos coletivos como forças políticas organizadas entram em disputa, mas se reconhecem como detentores dos mesmos direitos e respeitam as mesmas regras. Violar tal institucionalidade é encurralar a democracia, é aprisioná-la. Uma regra fundamental, instituinte e constituinte, é a soberania cidadã expressa através do voto. Dar o golpe, tornar ilegal a vitória legítima nas urnas, pode ser fatal em qualquer democracia. É o que estamos vivendo no Brasil como resultado da destituição do Governo Dilma e a imposição do Governo Temer.
Existem processos e neles atos definidores. O impeachment de Dilma é um deles, uma espécie de marco. A nossa democracia, porém, vinha perdendo intensidade desde muito antes. A estratégia de “conciliação política”, adotada pelo próprio PT, tirou o poder transformador aos governos após a Constituição de 1988. Tivemos avanços significativos, sem dúvida. Mas não mudamos o caráter autoritário e excludente de nossa sociedade, onde privilégios estão acima de direitos. Ademais, nem mexemos sequer na estrutura da riqueza e na vergonhosa acaparação dos recursos da sociedade. Temos classes dominantes extremamente ricas, autoritárias, racistas, machistas e patrimonialistas. O Estado, para elas, é o poder de garantir seus privilégios unilaterais, não espaço em disputa sobre o que é melhor para a sociedade.
Ainda não estamos numa ditadura, mas já não estamos em um processo democrático virtuoso. Estamos aprisionados, pois perdemos o espaço da disputa democrática. Temos uma institucionalidade só formalmente democrática. As velhas forças se apoderaram da institucionalidade. Temos partidos e um sistema parditário que não expressam correntes de opinião e sujeitos políticos da sociedade. Os partidos no Brasil – são mais de 30! -, com poucas exceções, não passam de agrupamentos de interesses privados, em busca de vantagens e recursos financeiros que o poder estatal pode propiciar em troca de sua lealdade ao governo de ocasião.
A conjuntura se apresenta extremamente difícil. As eleições municipais a nível nacional revelaram um profundo desinteresse pela política como ela é. Provavelmente, em nenhum município, os vitoriosos podem dizer que tem mais votos do que os cidadãos e as cidadãs que simplesmente se abstiveram de votar, votaram nulo ou em branco. A maioria preferiu não votar ao invés de votar no que não merece crédito. Isto é um golpe para a institucionalidade política e partidária, mas, sobretudo, é um sinal de crise da democracia como ideal e método de ação política. O golpe parlamentar, que instituiu o Governo Temer, colhe seus frutos em forma de descrédito na própria política e, mais perigoso ainda, na democracia.
Mas o momento revelou fantasmas presentes em nosso seio. O autoritarismo saiu do armário e seus arautos podem celebrar um não de todo desprezível apoio. Os fundamentalismos religiosos mostram com vigor sua intenção em estabelecer limites ao processo de conquista de agendas emancipatórias em termos de gênero e sexualidade, sem esconder a sua radical adesão e pregação de ideais de mérito e sucesso individual, acima do bem coletivo. Aqui estamos diante da ameaça que questiona o caráter laico e republicano da política.
Enquanto isto, o golpe revela a cada dia para que veio. Ele contribui de forma fundamental para aprisionar a democracia. O pacote de medidas já anunciado, em particular aquelas que congelam o orçamento público, ferem de morte a institucionalidade democrática conquistada com a Constituição de 1988. O sentido de todo o ajuste proposto por Meireles e apoiado pelo governo é tirar da esfera pública a decisão sobre orçamento, sobre como aplicar os recursos públicos. Sem dizer explicitamente, se está afirmando que banqueiros e rentistas tem prioridade sobre os recursos e isto deve ficar garantido na própria Constituição do país. Pode haver aprisionamento maior do substantivo da política numa democracia?
As adversidades são monumentais. Para além da institucionalidade em si, das eleições municipais e do que se passa no mundo, temos um enorme desafio que é ao nível dos princípios e valores, dos olhares e das significações, dos imaginários mobilizadores. Temos a grande mídia, pública por definição, mas privada na prática, explicitamente posicionada no sentido de desinformar e de disputar visões e projetos. Não há compromisso com a diversidade de opiniões por parte dos grandes meios públicos de comunicação. Além dos interesses imediatos que a mídia significa para o negócio e à acumulação, ela está ao serviço de projetos de democracia formal restrita, incapaz de gerar mudanças.
Precisamos urgentemente de um novo imaginário democrático mobilizador, capaz de renovar e radicalizar a própria democracia. Claro, o momento é de trincheiras de cidadania. Nelas e com base nelas, precisamos ousar pensar que outra democracia é possível para um outro Brasil e um outro mundo, também possíveis. Desconstruir é fácil e rápido, a golpes truculentos, de cima para baixo, que atropelam as institucionalidades existentes. Mas reconstruir e avançar exige monumental esforço e tempo, pois é com cidadania convicta e ativa, de baixo para cima, tirando partido e inspiração da nossa enorme diversidade e criatividade como povo. A volta às bases é um dever de cidadania, nesta difícil encruzilhada política.
 
Rio, 08/10/16

Tradução »