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Como permitimos que milhares de pessoas voltassem a passar fome?

Rita Corrêa Brandão

Especialista em Indicadores Sociais e diretora do Ibase

Em um período de apagão de dados e de 12 anos sem censo demográfico, saudamos com entusiasmo os esforços de todos os grupos de pesquisa que buscam desvendar a realidade vivida por nossa população seja em âmbito local, em territórios específicos, seja em âmbito nacional. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), é exemplar nesse sentido. 

Apesar de cientes do tamanho de nosso retrocesso e do avanço da vulnerabilização da população em diversos aspectos da vida social, ao lermos os dados expressos por esta pesquisa nacional, é inevitável o estarrecimento. Vivemos a triste e vergonhosa situação de ter milhões de pessoas passando fome em um país concentrador de renda, produtor e exportador de alimentos. A pergunta que não cala é: Como permitimos, enquanto sociedade, novamente voltarmos à situação em que milhares de pessoas passam fome?

O I Vigisan (2020) já demonstrava que, após um período de redução da insegurança alimentar e nutricional no Brasil[1], houve um retorno preocupante do cenário de fome dentre a população brasileira. Este segundo informe (II Vigisan) aponta que, entre o primeiro e o atual (2022), a insegurança alimentar (IA) grave (fome) subiu de 9,0% para 15,5% – um total de 14 milhões de brasileiros a mais que no período anterior. Em termos populacionais, chegamos ao quadro no qual 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil.

Para entendermos melhor a pesquisa, temos que ir até a vivência da fome. Há estágios de destituição que vão desde a insegurança e a incerteza quanto ao acesso ao alimento em qualidade e quantidade adequadas para a família (IA leve), passam pela redução quantitativa e/ou ruptura nos padrões adequados de alimentação, resultantes da falta de alimentos entre os adultos (IA moderada), e chegam à privação no consumo de alimentos, geradora da fome, que ocorre quando há redução quantitativa de alimentos também entre as crianças (IA grave). O II Vigisan (REDE PENSSAN, 2022) aponta que 125,2 milhões de pessoas no Brasil, hoje, convivem com algum grau de IA em seus domicílios.

Com relação ao trabalho, os dados demonstram que a fome estava presente em 36,1% (pouco mais de um terço) dos domicílios cujo chefe de família estava desempregado. Com relação à renda, em 90% dos domicílios onde a renda per capita era inferior a ¼ do salário-mínimo, verificou-se algum grau de IA e, em 43% (um em cada dois domicílios), seus habitantes vivenciaram a fome. 

Verificamos também uma desigualdade regional com relação ao acesso à alimentação adequada. A IA grave se manifesta com maior força nos domicílios das regiões Norte e Nordeste, com índices de 25,7% e 21,0%, respectivamente. A fome está mais presente nos lares rurais do que nos domicílios urbanos, com 18,6% e 15,0%, respectivamente. 

Importante destacar que, além disso, esta pesquisa aponta que os marcadores sociais de gênero, raça e escolaridade estão presentes no processo de precarização da vida da população e, por isso, são considerados geradores da fome. A situação de insegurança alimentar grave correspondia a 10,6% dos domicílios entrevistados de pessoas brancas. Já nos domicílios compostos por pessoas pretas ou pardas, o percentual sobe para 18,1%. Com relação ao gênero, a pesquisa revela que viviam em situação de fome 19,3% dos domicílios chefiados por mulheres, percentual que cai para 11,9% das residências quando a pessoa de referência é um homem. Nas casas chefiadas por pessoas com 8 anos de estudo em diante, 10,2% das famílias se encontravam em situação de insegurança alimentar grave. Entre 5 e 8 anos de estudo, o percentual sobe para 19,1%. Já nos domicílios onde a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía até 4 anos de estudo, a fome se fez presente em 22,3%. Portanto, há uma relação direta entre fome, raça, gênero e escolaridade, na qual mulheres negras com baixa escolaridade são as pessoas mais vulneráveis à fome.

Cabe destacar ainda que em domicílios com crianças de até 10 anos de idade, que engloba toda a primeira infância (0-6 anos), de 2020 para 2022, a fome dobrou, passando de 9,4% para 18,1%.    

Para termos uma ideia do tamanho da gravidade dos dados, segundo a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps) do Ministério da Saúde, a desnutrição infantil, quando ocorre na primeira infância, está associada à maior mortalidade, à recorrência de doenças infecciosas, aos prejuízos no desenvolvimento psicomotor, ao menor aproveitamento escolar e à menor capacidade produtiva na idade adulta. Nos países em desenvolvimento, a desnutrição nessa faixa etária constitui-se problema de saúde pública.

Estudos recentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também apontam efeitos negativos, imediatos e de longo prazo sobre as condições de saúde e bem-estar de crianças e adolescentes, alertando para o comprometimento de competências físicas e sociais.

Nossa situação social, além de penalizar com a IA grave milhões de brasileiros e brasileiras, ainda afeta as gerações futuras, pois a situação de carência alimentar na primeira infância pode comprometer potencialidades ao longo da vida escolar e, consequentemente, na vida adulta.

Todos esses dados evidenciam uma grave violação de direitos de cidadania da população brasileira, pois deixamos de cumprir o preceito da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da constituição (EC no 26/2000, EC no 64/2010 e EC no 90/2015)”. (BRASIL, 2016, Art. 6º, p. 18).

Nesse contexto, torna-se novamente necessário trazer a agenda de combate à fome para o centro de nossas reflexões e ações. O Ibase vem aprofundando o estudo da situação de insegurança alimentar grave vivenciada por famílias com crianças de 0 a 6 anos de idade em três territórios da região metropolitana do Rio de Janeiro: no bairro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, e nos bairros do Complexo do Alemão e do Complexo do Borel, conjuntos de favelas localizados na zona norte do Rio de Janeiro. O intuito é realizar, nesses territórios, uma campanha que dê visibilidade a essa situação, ordenar ações humanitárias com as famílias em situação de IA grave e contribuir com a atuação da cidadania ativa local na luta pela implementação de políticas e de programas efetivos de combate à fome, garantindo o direito humano à alimentação adequada (DHAA).

O DHAA é um direito humano básico, também assegurado em dispositivos do direito internacional[2]. Os dados apontam que nos distanciamos do cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 (ODS 2) da Organização das Nações Unidas (ONU): acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.

A fome em nosso país é a derivação direta de escolhas políticas que atacam frontalmente as garantias sociais necessárias à efetividade dos direitos humanos. Uma das frases mais importantes do Betinho no período da campanha contra a fome foi: “A alma da fome é política”.

Betinho mobilizou o país contra a fome na década de 1990.

Desde 2016, acompanhamos o desmonte das políticas de segurança alimentar, responsáveis por retirar o país do Mapa da Fome, com a extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário, a aprovação da Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL, 2016), que congelou o investimento na área social por 20 anos, e o desmonte da estrutura do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), em 2017. Em 2019, tivemos a Medida Provisória n. 870 (BRASIL, 2019), que extinguiu diversos Conselhos Participativos na gestão das políticas públicas, dentre eles o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) Nacional, além do esvaziamento de políticas públicas importantes, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE).

A fome deve ser enfrentada com políticas públicas de Estado e com participação da sociedade civil organizada. Vencer a fome significa ter, no centro da política, a mais radical negação das relações e dos processos ultraliberais perpetuadores de desigualdade e geradores de miséria no Brasil.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 21 jun. 2022.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Provisórias para instituir o Novo Regime Fiscal e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 22 jun. 2022.

BRASIL. Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019. Conversão da Medida Provisória nº 870, de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios; altera as Leis nos 13.334, de 13 de setembro de 2016, 9.069, de 29 de junho de 1995, 11.457, de 16 de março de 2007, 9.984, de 17 de julho de 2000, 9.433, de 8 de janeiro de 1997, 8.001, de 13 de março de 1990, 11.952, de 25 de junho de 2009, 10.559, de 13 de novembro de 2002, 11.440, de 29 de dezembro de 2006, 9.613, de 3 de março de 1998, 11.473, de 10 de maio de 2007, e 13.346, de 10 de outubro de 2016; e revoga dispositivos das Leis nos 10.233, de 5 de junho de 2001, e 11.284, de 2 de março de 2006, e a Lei nº 13.502, de 1º de novembro de 2017. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Lei/L13844.htm. Acesso em: 22 jun. 2022.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Genebra: ONU, 16 de dezembro de 1966. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf. Acesso em: 22 jun. 2022.

REDE PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil – II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil – II Vigisan. (Relatório final). São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede Penssan, 2022. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf. Acesso em: 21 jun. 2022.

REDE PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil – Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil – Vigisan. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede Penssan, 2020.

Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/04/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: 21 jun. 2022.


[1] A implementação de diversas políticas públicas combinadas com as políticas específicas de segurança alimentar e nutricional, como a transferência condicional de renda e o apoio à agricultura familiar, contribuíram para que o Brasil saísse oficialmente do Mapa Mundial da Fome em 2014.

[2] Desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 25 já reconhecia o direito à alimentação como direito humano. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), em seu artigo 11º, n.º 1, define que os estados partes reconhecem “o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966).

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