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Cidadanias e Territórios em situação de risco: o que fazer?

por Cândido Grzybowski, sociólogo e ex-diretor do Ibase

Tal composição do título resume o que é viver como cidadanias consideradas periféricas, condenadas a viver em territórios urbanos e rurais entregues à própria sorte pelo domínio dos interesses do grande capital excludente, territórios comunitários com carências múltiplas e sem a devida atenção de políticas públicas, sujeitas à mudança climática em curso, tempestades e enchentes devastadoras, grileiros, garimpeiros, milicianos e traficantes, além de agressivas e violentas ações policiais, produzindo mortes. É difícil contabilizar a perda de vidas e de condições de viver nestas circunstâncias esquecidas, fora do radar, onde predominam a fome, a miséria, a negação de direitos iguais na diversidade do que somos, e as ameaças de morte no dia a dia. Aí, a solidariedade e a autoajuda comunitária é o que pode aliviar a dor e, sobretudo, salvar vidas em momentos de catástrofes.

Na disputa de ideias e direções com sentido de conquista de hegemonia democrática, de transformação ecossocial includente em direitos iguais na diversidade, esta questão, que atinge praticamente a metade da população do país, é um desafio central para cidadanias ativas em suas concepções e no seu que fazer. A barbárie do capitalismo, com sua exploração do trabalho, seu colonialismo, racismo e patriarcalismo, seu imperialismo, seus exércitos e armas, para acumular sem limites, se manifesta plenamente na criação sistemática de periferias, num processo que se estende dos vários territórios locais do para o mundo como um todo. O genocídio é visível e incontestável em situações como a da guerra de Israel contra o povo da Palestina. Mas o genocídio – é fundamental não perder de vista – é algo  presente, de forma permanente mas diferente, em praticamente todos os territórios  e países.

É próprio da lógica de exploração e dominação capitalista gestar permanentemente enormes contingentes de periferias espalhadas por todos os países do planeta. Basta olhar a “celebração” e debates anuais do grande capital no Fórum Econômico Mundial, dos 1% de donos do mundo,  nas montanhas isoladas de Davos, para se dar conta da “fortaleza”  que  protege a pequena parcela globalizada dos proprietários e gestores das grandes empresas e grandes fortunas.

Os grupos contingentes de pobres da população mundial não vivem em fortificações protegidas e nem tem acesso a elas. Os territórios concretos, com suas potencialidades e carências, é seu pedaço de chão, mas sob ameaça permanente praticadas por forças externas a ele. Claro, o risco de destruição por eventos climáticos ou então de expulsão a qualquer hora faz parte do cotidiano, basta que seu território seja avaliado como base de expansão de negócios por forças do capital em busca de valorização, tanto nas cidades, grandes ou pequenas, como nos campos, matas e águas!

O desafio político transformador de tal situação é construir coletivamente potência cidadã viva e múltipla no seu seio, pela própria população local, em seu território de vida. Por sinal, no mundo inteiro, as experiências mais poderosas e virtuosas de transformação criam raízes e se difundem a partir dessas populações em situação de precariedade. Não são obras de engenharia desenhadas sem participação local ou políticas monetárias compensatórios que podem mudar a situação de exclusão e risco. Sem dúvida, mudanças envolvem canalização de recursos. Portanto, sempre vão ser necessários governos e políticas públicas, pois o  capital que investe localmente estará sempre visando a sua própria acumulação, nunca as necessidades e o empoderamento da comunidade. Por mais precária que seja a situação da comunidade humana local a verdade é que para ela é seu território de vida, de cidadania. Ou ela é sujeita de sua própria transformação, ou a transformação será contra ela, nunca em seu benefício. Pior de tudo é que, as próprias ações do poder público podem levar à expulsão, como muitas vezes ocorre. É fundamental ter claro este ponto para não continuarmos cometendo os mesmos erros do passado.

Num situação como a de hoje, de domínio das grandes corporações econômicas e financeiras em escala global, de um lado, desigualdades, exclusões sociais, pobreza e fome, também globalizadas e em expansão, de outro lado, a mudança climática planetária vem avançando de forma cada vez mais acelerada e devastadora. Na avaliação de especialistas de centros científicos pelo mundo junto com movimentos e fóruns mundiais de cidadania ativa e muitos governos do Sul Global, estamos diante de implosão do planeta e da própria humanidade, das condições de viver para todas formas de vida, enfim. Os eventos climáticos extremos do ano que passou e que continuam neste são incontestáveis. Mas a fome e pobreza também são.

Minha intenção inicial não foi, mais uma vez, focar a estrutura de poder econômico, imperial e militar que domina o mundo e de onde só dá para esperar que nada mude ou, ainda pior, que a destruição ecossocial só se acelere. Para criar transformação  resiliente é necessário resistir, buscando saídas no contrapé da globalização capitalista, olhar o mundo de baixo para cima ao invés de cima para baixo. Ou seja, descobrir e fortalecer o que é específico, a grande diversidade ecossocial territorial, sua população, sua organização econômica, social e política, o poder de suas vozes, participação e culturas. A base é o  princípio da convivência com os sistemas ecológicos do território comunitário, não obras de engenharia, como a experiência da ASA e as cisternas para a conservação da água, no Semiárido do Nordeste do Brasil, demonstram cabalmente.

Neste sentido, trata-se transformar “carências” nos territórios de vida  em “potências transformadoras”, como muitas comunidades locais, urbanas e rurais, com suas organizações e redes de prática agroecológica, proteção comunitária, afirmação social, política e cultural vem demonstrando pelo Brasil afora. Esta é a fonte de inspiração básica para um irresistível movimento transformador ecossocial, com capacidade de trazer os direitos ecossociais iguais na diversidade do que somos e do que são as potências e comuns contidos no territórios, para nesta base começar a construir um outro Brasil e um outro mundo, onde todas e todos cabem e a integridade de todas as formas de vida e dos sistemas ecológicos sejam parte do viver humano.

Não podemos nos iludir com o “mantra do desenvolvimento” baseado na prioridade do investimento privado das grandes empresas e negócios, dos 1% de “donos” e seu poder. Daí só poderá vir mais extrativismo e destruição ecossocial, mas crescimento de seu capital, mais exclusão, mudança climática e morte, em última análise. Além de guerras, armas, muralhas e genocídios, numa combinação terrível como vemos no dia a dia. Desenvolvimento é o favorecimento da exploração do petróleo, das minas e do agronegócio, desmatamento, contaminação, doenças e “criação sistemática” de periferias em territórios de sofrimento e risco, de expulsões e migrações, além da ameaça de mudança climática. Desenvolvimento é favorecimento ao capital e limites de financiamento nos programas públicos potencialmente de cuidado de gente e da natureza. Desenvolvimento é política fiscal restritiva para tudo que é ecossocial, democratizador, transformador e garantidor de direitos iguais na diversidade.

Como afirmam os “Zapatistas de Chiapas” a solução é dar lugar a “muitos mundos num mesmo mundo”, o planeta Terra, para reencontrar e reconectar nossas vidas com as possibilidades dos territórios: sejam polos ou zonas equatoriais, tropicais, temperadas, Sul, Norte, Leste, Oeste, zonas costeiras de mares e oceanos ou rios, interiores profundos, planícies, vales, planaltos ou montanhas, grandes matas, campos ou terras semiáridas, desertos e seus oásis, com suas biodiversidade. Não há um modelo único por razões ecossociais – de dinâmica ecológica combinada com dinâmica social em todos os sentidos. A sustentabilidade depende do colar-se às potencialidades do territórios gerido como um comum compartido. É assim que se criam e desenvolvem as culturas humanas, parte da solução sustentável.

Mudar de perspectiva – na verdade de paradigma analítico e político – é necessário para ver, pesquisar e avaliar questões fundamentais que estão um tanto fora dos debates mundiais. Por isto a insistência na territorialidade das situações concretas. Mas isto não muda o fato também fundamental que somos uma mesma humanidade no mesmo planeta Terra. Como não dá para desconsiderar o fato que a mudança climática é de ordem planetária, mas de efeitos diversificados segundo os territórios,  mesmo olhando de outra perspectiva não podem deixado de lado ou ignorado tal dimensão. A verdadeira sabedoria está em entender e agir a partir do específico – a dinâmica específica da vida em territórios específicos – e construir a pluralidade do todo, do planeta terra.[i] Isto é algo por ser feito, mas que o domínio pela globalização capitalista, através da economia, do poder estatal e da ideologia/valores, impede. Temos que estar mais nas ruas, no chão da sociedade, do que em eventos globais nada consequentes pelos seus acordos simbólicos, sem força impositiva aos governos e corporações globais.

Precisamos mudar de perspectiva e ação. Claro, nas múltiplas formas que a crise climática afeta as periferias, precisamos cobrar urgentes ações de emergência para salvar vidas e um mínimo de conforto para quem tudo perde, sem esquecer da vergonhosa escalada de violência, emprisionamento e morte, focada especialmente nos jovens negros, por ações de milícias e polícias militares. Estas ações, contudo, não podem parar aí. Devemos exigir mudanças para valer, deste a contenção do capital imobiliário e milícias, e propostas de ações estruturantes concertadas com a população pobre e excluída que vive nos territórios periféricos. Chega de territórios de exclusão! Não basta de grandes conjuntos habitacionais longe das comunidades concretas e seus desejos, ou de obras de engenharia nos próprios territórios sem participação e respeito às visões, modos de viver e demandas das próprias comunidades. Existe muita vida, capacidade e criatividade apesar de serem territórios hoje de periferias em risco. Quem precisa de atenção e apoio não é a indústria de construção, mas a população do território concreto, visando fortalecer o seu potencial e resiliência. Para isto ela tem que ser a cidadania ativa e não mera população periférica ou favelada beneficiada. Estamos diante de construção conjunta de alternativas, entre as comunidades e os poderes públicos, onde empresas, quando necessárias, são apenas executoras do acordado com a cidadania local e mediação  do poder público.

Finalizo assinalando que a participação cidadã sempre faz a diferença em qualquer ação governamental que vale a pena. Mas não dá para confundir participação como ter um espaço e uma oportunidade de ser consultado pelo poder estatal sobre decisões já tomadas ou políticas já definidas por especialistas, nos reservados espaços do poder. A participação  fundamental é na concepção, na construção e na própria implementação de qualquer política democrática ecossocial transformadora, inspirada na igualdade de direitos de ser e viver como cidadania na diversidade. Daí, sim, podem vir ações  governamentais e de cidadania com virtuosidade, tendo no centro os comuns, o cuidado, a convivência e o compartilhamento como bases territoriais de resiliência ecológica e cidadã. Aliás, as transformações que ocorreram e podem ocorrer dependem do fortalecimento da cidadania local, suas resistências, propostas e ação coletiva. Nunca do capital ou da “boa ação estatal”, apesar de necessidade de investimentos e, sobretudo, da atenção e ação cuidadosa do Estado aos clamores da cidadania sujeita a viver no risco permanente no próprio território comunitário, com grandes necessidades.

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