por Cândido Grzybowski

Ilmo. Sr.
Herbert de Souza
Estrada da Cidadania, Casa dos Heróis, s/n
Universo Invisível
Rio de Janeiro, 7 de agosto de 2017
 
Caro amigo e companheiro Betinho,
Como vai? Como andam as coisas por aí? Seus novos amigos de jornada, na Casa dos Heróis, estão bem? Escrevo para matar saudades daqueles nossos papos sobre conjuntura com parceiros e cúmplices políticos nas lutas pela democracia e cidadania, regados a cerveja bem gelada, nos finais do dia lá no Ibase. Desde sua partida, desta vez sem volta, em 09/08/97, sempre fazemos algo pensando no legado político deixado por você. Neste ano vamos fazer várias atividades durante a Semana Betinho, algumas organizadas pelo Ibase outras por entidades parceiras como ABIA, COEP e Ação da Cidadania, sem contar muitas outras pelo Brasil afora. Para o dia 7 de agosto, segunda feira, organizamos a roda de conversa “Análise de conjuntura com Betinho”, com os remanescentes daquele grupo de PG – Políticas Governamentais – do seu tempo.
A conjuntura no Brasil continua de mal a pior. O governo golpista do Temer, só com 5% de aprovação, sobrevive com as conhecidas práticas do toma lá dá cá, verdadeiro câncer da política, capaz de levar à morte a democracia. Temer acabou se livrando de um julgamento no STF por corrupção passiva na semana que passou, apesar de ser gravado negociando propina com um grande empresário no palácio, na calada da noite, e um seu assessor direto ter sido filmado saindo de um restaurante com uma mala cheia de dinheiro. O “centrão” do Congresso, agraciado com as benesses governamentais, junto com a direita da política, deu a maioria a Temer para arquivar o pedido de julgamento. Oficialmente, o vergonhoso voto foi para dar continuidade à chamada “agenda de reformas”, uma proposta de desmanche das conquistas de direitos. Lembro que esses direitos foram conquistados enfrentando aquele outro “centrão”, o do Sarney, no tempo da Constituinte pós-ditadura.
Na verdade, Betinho, estamos vivendo um franco retrocesso em termos de direitos de cidadania. O país foi tomado de assalto pelas velhas forças dos donos de terras e de dinheiro, que compram e corrompem tudo que possa impedir o seu avanço e seu alinhamento descarado com o processo de globalização comandado pelas grandes corporações econômicas, financeiras e midiáticas. A tal agenda de reformas é uma proposta radical de mudanças na Constituição e nas leis para submeter a economia e a democracia do Brasil aos interesses do mercado. Restringe-se a cidadania para dar lugar aos especuladores, bancos, mineradoras e petroleiras, agronegócio e seus asseclas. No processo, esta gente está levando o país na direção de ser um subserviente do grande capital global, renunciando à busca de caminhos democráticos de construção de uma sociedade de cidadania plena, para todas e todos, sem discriminações, e de sustentabilidade socioambiental.
Estamos redescobrindo o quanto de reacionarismo, autoritarismo, machismo, racismo e intolerância com a diferença estão presentes em nossa sociedade. O discurso radical de direita saiu do armário e volta a pregar a necessidade de soluções de Estado forte para servir a serviço dos lucros. Temos verdadeiros clãs familiares acima de partidos que dão as cartas na política, descaradamente.  E, sobretudo, temos a corrupção como negócio e prática política. O modo de fazer política através da corrupção é tão generalizado que está presente em todas as esferas do executivo, nos municípios, pequenos e grandes, em todos os estados, no governo federal, nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Congresso Nacional, e em todos os níveis do próprio Poder Judiciário.
A “Ética na Política” – uma de suas grandes bandeiras, Betinho – continua sendo uma questão atual e fundamental para que seja possível emancipar a política e a democracia do patrimonialismo reinante. Precisamos dar à política o sentido de bem comum essencial para a democracia. Desmercantilizar a política é tarefa essencial, mas extremamente difícil. A proposta de reforma política em discussão no Congresso limita-se à questão partidária, eleitoral e de representação, visando a manutenção do status quo. Além disto, aponta para algo ainda pior do que temos atualmente na questão da representação cidadã. A reforma política faz parte da agenda do retrocesso.
Tudo isto vem acompanhado de uma monumental crise econômica. Em minha opinião, estamos mergulhados em mais uma década perdida. Em quatro anos perdemos 9% do PIB, com uma tímida retomada agora. O desemprego disparou para mais de 14%, com pequeno recuo no último trimestre. A informalidade está voltando a ser o único meio de subsistência para milhões. Os e as descartáveis são visíveis nas ruas das cidades como naqueles anos sombrios dos 80 e 90. O Brasil voltou a marcar presença no “mapa da fome”.
Nem falei do mundo na atualidade. As perdas democráticas são visíveis em toda parte diante do poder das grandes corporações econômicas e financeiras. O conservadorismo e diferentes fundamentalismos avançam pelo mundo e criam até populistas de direita, como o Trump no governo dos EUA, com aquele enorme arsenal nuclear para fazer a vontade imperial ser respeitada. Não temos guerra mundial, mas muitas guerras pelo mundo, com presença e conivência das potências, num esforço de redesenhar a geopolítica mundial. São guerras de grande capacidade de destruição e morte, com milhões de deslocados e migrantes em busca de novas oportunidades para viver. E temos a questão da mudança climática provocada pelo tipo de economia voltada à acumulação sem limites, predatória de recursos e baseada na energia fóssil. Mas pouco ou nada está sendo feito para mudar o desenvolvimento capitalista em que nos baseamos. Enfim, o cenário mais provável é de que estamos caminhando para algo próximo à barbárie. A conjuntura não é favorável para avanços em termos de movimentos de cidadania planetária, com o Fórum Social Mundial caminhando para total irrelevância.
Neste contexto todo, o Ibase vem enfrentando uma nova crise de sustentabilidade política e econômica, buscando caminhos de refundação. Eu deixei finalmente a direção, à qual você me levou lá no início dos 90. Hoje Athayde Motta é o diretor e Rita Brandão, a vice. O Ibase encolheu momentaneamente, tipo poda de outono e inverno, para voltar a brotar e frutificar com novos projetos, renovado vigor e radical engajamento pela cidadania ativa e democracia.
Bem, Betinho, teria tanta coisa para conversar com você, mas não quero aborrecê-lo. Só uma questão para encerar: o que fazer, companheiro? Você deixou um legado de ideias e propostas que até hoje nos inspiram. Mas que falta nos faz a sua ousadia e o seu carisma político para animar campanhas e nos fazer não perder a esperança nas trincheiras de cidadania em que estamos atualmente.
Com a mais saudosa lembrança, envio um abração.
Cândido

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