Por Cândido Gzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase
Há 30 anos, em 1984, Herbert José de Souza – o nosso inesquecível Betinho – publicou pela Vozes o livrinho Como se Faz Análise de Conjuntura. Trata-se de obra primorosa, muito procurada e lida por ativistas, tanto de movimentos sociais como educadores populares e integrantes de organizações de cidadania ativa, por estudantes universitários nas áreas de ciências sociais e por quem se interessa em ir além das informações bombardeadas todos os dias pela mídia que temos e quer se aprofundar na compreensão da conjuntura. O livrinho, em 2014, chegou à 34a. edição, sempre pela Vozes.
Betinho, um dos fundadores do Ibase, nos deixou um legado inspirador, que até hoje dá um sentido do que fazer e, ao mesmo tempo, um método. Merece ser celebrado e a forma mais adequada é fazendo análise da conjuntura atual. A ideia surgiu em troca de mensagens com José Tanajura Carvalho, professor de ciências sociais da UFMG, que também colabora no presente livro.
Lembremos antes de tudo o momento político de 1984, quando o livro foi escrito e publicado. Betinho escreveu em sua introdução:
“No momento em que toda a sociedade brasileira acompanha ativamente o desenrolar dos acontecimentos políticos, fica evidente que não basta apenas estar com a leitura dos jornais em dia para entender o que está ocorrendo. No volume de informações que é veiculado todos os dias é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo. Fazer isto é fazer análise de conjuntura” (Souza, 1984, p.7).
Trinta anos após, aquela conjuntura já é história passada. Betinho estava vivendo na aceleração dos acontecimentos que levaram ao fim da ditadura. Naquele momento ocorreu uma campanha cívica que, hoje podemos dizer, é um acontecimento histórico marco. As “Diretas Já” talvez sejam uma das campanhas cívicas mais memoráveis na história recente do Brasil. No final de 1983 e janeiro de 1984, milhões de nós nos mobilizamos por democracia. Para instituí-la, ocupamos ruas e praças das cidades. Com nossa mobilização, demonstramos na prática que é sempre nas ruas e praças que se forja a democracia em sintonia com a cidadania. Que festa foi aquela! Algo mágico nos tornava finalmente um povo com sentido e projeto, cantando, dançando, compartilhando sonhos de democracia e muita alegria. As “Diretas Já” marcam a mais importante derrota que a cidadania brasileira infringiu à truculenta ditadura. Considero este movimento de cidadania o marco mais emblemático na democratização. O que veio depois em termos institucionais não foi definido ou gestado aí, definitivamente não: Nova República, Constituição de 1988, primeira eleição direta de 1989 e tudo mais. Mas a refundação da democracia, a implosão das contradições políticas dominantes até então, por assim dizer, abrindo possibilidades totalmente novas, se deu aí, através das “Diretas Já”.
Bem, Betinho falava da conjuntura inaugurada com as “Diretas Já”, onde ele foi ator. Nossa tarefa de avaliar algo fundante no passado é mais simples. Trata-se de análise histórica de uma conjuntura que não se move mais, só nossas interpretações do ocorrido podem divergir. É importante lembrar isto porque a análise da conjuntura é sempre um ato político de tomar posição. Mas é muito mais verdadeiro e de risco fazer análise de conjuntura enquanto se desenrolam os acontecimentos no presente, intervindo sobre ela. Segundo Betinho, fazer análise de conjuntura é se alinhar com uma das leituras possíveis, já que se trata de analisar agindo ao mesmo tempo. Betinho lembra que uma, a dominante, é “…a partir da situação ou ponto de vista do poder dominante (a lógica do poder)”. A outra é “…a partir da situação ou do ponto de vista dos movimentos populares, das classes subordinadas, da oposição ao poder dominante.” (Souza, 1999, p.15 e 16). Não existe análise de conjuntura desinteressada, pois ela é “…uma análise interessada em produzir um tipo de intervenção política; é um elemento fundamental na organização da política, na definição das estratégias e táticas das diversas forças sociais em luta.” (Id. Ibid. p.17).
É com esta perspectiva que o presente livro foi organizado. Trata-se de trazer ao debate um olhar mais aprofundado, alternativo ao que prepondera no “clima” do espaço público, com seus mal estares e incertezas, mas com suas possibilidades também. Uma conjuntura que, na minha análise, pode definir para onde vai a democracia brasileira e qual o caminho que precisa ser criado. Claro, como ainda o próprio Betinho nos alerta, fazer análise de conjuntura é caracterizar as questões centrais que ocupam o cenário social e político (Id. Ibid., p.45). Mas quais são essas questões?
Na organização do livro me inspirei no Grupo de PG – Políticas Governamentais, que Betinho criou e animou no Ibase, com reuniões mensais de seus colaboradores e parceiros políticos – eu diria cúmplices – desde a publicação do livro de que estamos tratando até o seu falecimento em 1997. Aliás, foi via PG que Betinho me arrastou até o Ibase na segunda metade dos 80 e me fez diretor em 1990. A PG, para quem dela participou – éramos um grupo de uns 50 a 60, mas apenas uns 20 a 25 “duros”, sempre presentes – foi uma experiência política das mais marcantes. Dela se originou a revista do Ibase Políticas Governamentais, que foi mudando de nome, ainda com o Betinho ativo, e se tornou Democracia Viva, após seu falecimento. O que importa mais aqui é o método da PG. A reunião era na 3a quarta-feira do mês, sempre após o expediente e com boa cerveja. Depois de debates acalorados, havia o jantar em grupo. Houve uma vez, na quarta-feira após o fatídico Plano Collor, em março de 1990, que o Ibase implodiu com tanta gente presente. O que uma mera análise de conjuntura pode mobilizar!
O fato é que me inspirei no método do Betinho e seu exército de Brancaleone. Toda vez a gente começava o debate com uma avaliação da conjuntura em seu conjunto. Tratava-se de afinar a percepção, de forma compartilhada, quais eram as questões. Isto tomava a metade do tempo da reunião da PG. A segunda metade era de avaliação de questões específicas. A ordem era determinada pelo debate prévio, que nos levava a priorizar questões. Nunca deixávamos questões de fora, pois, existe a tal relação entre estrutura e conjuntura, como muito bem lembra Betinho. No momento algumas questões sobressaem, mas o processo estrutural é uma condicionante a sempre ter presente, pois muda em outro ritmo. Como nos lembra Marx, que tanto inspirou o Betinho, a gente faz histórica, mas não escolhe as condições.
Tudo isto é para dizer que, na organização do presente livro, faltou uma PG para caracterizar e hierarquizar as questões. O jeito foi convocar velhos e novos colaboradores, mas sem a reunião prévia para discutir em conjunto. Só trocamos mensagens por Internet e assim mesmo de forma limitada, pois como pivô na armação do livro não socializei as mensagens. Infelizmente, não deu para ter todo mundo sondado. Todos manifestaram adesão à ideia, mas “a conjuntura individual”, com outros compromissos, os impediu de participar. Nem sei o quanto as diferentes pessoas que participam com textos primorosos sobre questões específicas no Brasil de hoje se conhecem e que relações pessoais e, sobretudo, políticas tem entre si. A obra coletiva é, ao mesmo tempo, uma novidade para cada uma e cada um que contribuiu para ela se tornar viável.
Por que tais questões? Por que esta ou aquela não estão incluídas? As lacunas deste livro de homenagem ao memorável livro do Betinho são quase todas minhas. Um pouco foi devido ao curto espaço de tempo que dei às pessoas consultadas. Fatalmente alguns temas e algumas contribuições fundamentais não foram possíveis. Mas asseguro, cada texto é em si uma preciosidade. A obra pode parecer até apontar diferentes caminhos. Mas existe análise de conjuntura que não acabe assim mesmo, com dúvidas qualificadas? O aspecto fundamental é que a análise de conjuntura é um subsídio fundamental, mas não é ela que por si só molda as opções políticas fundamentais. Ela ajuda nas opções de rumos e caminhos a construir. A construção de uma sociedade de direitos de cidadania para todos e de sustentabilidade socioambiental, através da radicalização da democracia pela cidadania ativa, de algum modo nos une neste esforço de análise.
Boa leitura! Sugiro também uma releitura do livrinho do Betinho com olhares de hoje, pois sempre podemos ser surpreendidos com novas descobertas metodológicas. Afinal, caminhos se fazem andando, mas com avaliações sistemáticas do passado, do presente e dos desafios na construção de outro futuro.
Acesse aqui o documento preliminar Análise de Conjuntura 2014

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