Artigos

A emergência da construção de outro amanhã

por Cândido Grzybowski

Sociólogo, presidente do Ibase

Num mundo totalmente interdependente, não importa onde estejamos, estamos vivendo uma experiência comum de humanidade com as angústias, ameaças e incertezas da pandemia da Covid-19. É uma experiência planetária, dolorida, de resistência e solidariedade, compartida entre bilhões de seres humanos, sem distinção, mesmo reclusos nas trincheiras de nossos refúgios familiares. Nunca foi tão evidente que uns e umas dependemos de outros e outras, mesmo tendo ainda os que negam tal fato. Não é o fim, mas o amanhã não poderá ser igual. Talvez não seja a melhor forma de nos redescobrirmos como seres totalmente sociais, fortes e frágeis ao mesmo tempo. Não temos para onde escapar, do vire-se cada um por si, azar dos demais. E, por cima de tudo, nós temos o desastre político do desgoverno de um autoproclamado fascista.

Não é demais afirmar que estamos diante de um rei totalmente nu em sua brutalidade e avareza: o mercado capitalista global a serviço de 1% e seus asseclas para acumular riquezas, contra a saúde e o bem viver dos 99%, bem como a sustentabilidade ecossocial do planeta como um todo. A crise da pandemia é apenas um sinal do que vamos ter daqui para frente. Não temos para onde fugir. Só nos resta mudar, como nas grandes crises que a humanidade já enfrentou no passado.

Como tirar partido deste momento especial, com todo o sofrimento que nos causa? Acho que as palavras de Noami Klein, ativista reconhecida por outro mundo, expressam bem o que gostaria de afirmar aqui: “O que um momento de crise como este revela é nossa interrelação. Estamos vendo em tempo real que estamos muito mais interconectados uns com outros do que nosso brutal sistema econômico nos faz crer. (…) Se não nos cuidamos uns a outros, ninguém de nós estará seguro”. E acrescento o que a nossa Eliana Brum escreveu dizendo que estamos em isolamento físico mas não social: “O que está acontecendo hoje é exatamente o contrário do isolamento social. Fazia muito tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto.(…) …finalmente os humanos descobriram que podem usar o celular para se encontrar, em vez de se isolarem cada um no seu aparelho. (…) A beleza é que, de repente, um vírus devolveu aos humanos a capacidade de imaginar um futuro onde desejam viver.”

Uma primeira e fundamental questão a levar em conta é que o Covid-19 é uma pandemia que revela a brutalidade das relações de classe, gênero e raça que estruturam nossas relações sociais no mundo inteiro. Ademais, precisamos ter presente que o neoliberalismo, além de projeto de acumulação para a grande finança “…es una matriz de subjetividades”. Seus pilares são: individualismo, primazia do privado sobre o público e meritocracia. Mas, como adverte Elvim Calcaño Ortiz, autor de tais afirmações, “El Covid-19 nos está dejando outro mundo em outras claves geopolíticas”. Enfim, a situação contem ameaças e possibilidades de um ponto de vista dialético.

É alentador descobrir a quantidade de análises e reflexões estrategicamente inspiradoras que estão aparecendo a cada dia. Ouso afirmar que, finalmente, estamos criando massa crítica para imaginar, pensar e fazer outro mundo. Não será o Covid-19 que matará tal força criativa. Concordo com Emir Sader quando afirma que: “Na crise os grandes dilemas da sociedade aparecem com toda evidência. Não é a esfera privada, a esfera mercantil, que cuida das pessoas, da grande maioria da população”. Não podemos perder de vista que “A pandemia é social. (…) a luta para defender a vida na pandemia, às vezes, toma a forma de uma luta direta contra a lógica do capital, a violência da lei e abstração do preço”. Não podemos enfrentar tal situação em termos individuais ou privados. Precisamos criar movimentos de mudança cidadã de grande envergadura e força transformadora, desde aqui e agora, em rede, é a chance que temos.

O primeiro e fundamental princípio ético-político a reafirmar como base do que precisamos construir e disputar é a própria visão da democracia como condição estratégica da mudança. Democracia é muito mais do que competição pelo voto e garantia de direitos. É uma forma de sociedade. A crise mostra que estamos longe de ter isto em nossos territórios de vida e cidadania, em nosso país, no mundo. A igualdade social com liberdade, direitos e condições de viver, em todas as situações, sem descriminações, é a única qualidade intrínseca qualificadora de democracias substantivas, com capacidade permanente de transformar e construir outro mundo. Faço minha a pergunta e a afirmação de Diego Cunha: “Pode a pandemia do coronavírus ser o ´grande` nivelador do século XXI? Há alternativas à sociedade de concorrência generalizada.”[i]

Mas precisamos ter presente que não é o que nos é oferecido pelos poderes fáticos no mundo de hoje. O desafio que temos pela frente é monumental, até parece instransponível. Mesmo que não concordemos integralmente, acho que cabe ter presente a questão de fundo que levanta Sérgio Rodriguez Gelfenstein, baseado em dados concretos, “La tercera guerra mundial ha comenzado. Es la que el capitalismo le ha declarado al mundo. Este conflicto que se expresa como la lucha contra el coronavirus está poniendo en el tablero las reservas morales, éticas, económicas, políticas, culturales y científicas que la humanidad tendrá que utilizar para enfrentar e vencer a un enemigo implacable que usa arma como el lucro, la ganancia, la exploliación, la destrucción del planeta y la desaparición del Estado en su guerra a muerte contra la humanidad.”  Entre seus argumentos, apresenta dados reveladores, comparando gastos em saúde e gastos militares. Segundo a OMS, em 2018, os gastos médio em saúde per capita foram de US$ 60 nos países de renda média e baixa e de US$ 270 nos de renda alta. Mas, segundo o Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (SIPRI), os gastos militares per capita no mundo, em 2018, foram de US$ 240. Mas os países membros permanentes do Conselho de Segurança, da ONU, gastaram muito mais: US$ 1845, os EUA, US$ 882, a França, US$ 715, o Reino Unido, US$ 169, a China e US$ 414, a Rússia. Estes organizam a morte e não a vida e a paz no planeta.

Concordo que estamos em um tempo de lutas biopolíticas, em que  a grande e decisiva ameaça é a mudança climática, negada por tantos poderosos pelo mundo e, sobretudo, ignorada pelas grandes corporações econômicas e financeiras que querem preservar seus lucros acima de qualquer limite ecossocial para garantir a integridade do planeta e a sustentabilidade da vida. Por isto, como proposta, trago aqui a oportunidade estratégica que a crise de grande envergadura que estamos vivendo nos traz como alternativa possível: a instituição dos comuns do local ao mundial como transformação deste sistema destruidor da vida e do planeta.

Duas grandes referências no tema dos comuns nos ajudam nesta tarefa estratégica de cidadania: Pierre Dardot e Chistina Laval. Segundo eles, a tragédia do Covid-19 é “…um teste para toda a humanidade. O que a pandemia está testando é a capacidade das organizações políticas e econômicas de lidar com um problema global vinculado à interdependência dos indivíduos, ou seja, algo que afeta a vida social de todos de um forma básica.” Como saída, propõem a instituição dos comuns mundiais: “Saúde, clima, economia, educação, cultura não devem mais ser considerados propriedade privada ou propriedade estatal: devem ser considerados bens comuns globais e instituídos politicamente como tais”. E acrescentam que não haverá solução vinda de cima. “Somente mediante insurreições, levantes e coalizões transnacionais de cidadãos podem impor isto aos Estados e aos capitais.”

Mas por que os comuns agora? Aí recorro às propostas de uma figura emblemática neste debate, com iniciativas concretas e inspiradoras, o Michel Bauwens. Em entrevista publicada por Olivier Fluminan, em 18/03/2020, ele aponta algumas condições essenciais para tal tarefa[xi]. Primeiro, os critérios para ter “comuns” no centro de nossas vidas. Ele aponta três como incontornáveis:

  • Trata-se de recursos compartidos, materiais ou imateriais
  • Os comuns são tornados comuns por uma comunidade ou grupo de parceiros. A governança participativa sobre os comuns é central, pois se trata de propriedade compartida. O comum não pode ser do Estado ou de uma empresa.
  • As regras e as normas são produzidas pela comunidade de parceiros. Trata-se sempre de uma escolha humana e social. Não existem comuns sem, como dizem se diz em inglês, communing, a prática do fazer em comum e transformar tudo o que possível em comum.

 
Mas o que importa é destacar suas análises sobre a crise das civilizações e a volta do debate dos comuns, como a que estamos vivendo agora de forma dramática com o coronavírus. Segundo Bauwens, concordando com ele, as grandes crises civilizacionais que a humanidade enfrentou são devidas às disputas por recursos raros e sobre exploração dos mesmos. Sempre, até aqui, na crise e como alternativa a ela, se regeneram os comuns para reestabelecer os equilíbrios naturais.
Na crise atual, os comuns podem ser uma alternativa? Para Michel, o sistema capitalista demonstrou que não pode viver nos limites planetários. E dá alguns exemplos claros sobre algo até visto como banal, o uso do carro individual (que é utilizado só 5% do seu tempo e é um dos grandes exemplos de sistema de desperdício em que vivemos). Compartir carros entre pares já é uma grande alternativa. Mas o mais importante, segundo ele, é ampliar exponencialmente o convívio horizontal e da cooperação. Algo que estamos sendo levados a radicalizar nesta situação de isolamento físico, mas de possibilidade convívio social amplo que as redes digitais nos oferecem.
Parece absurdo, mas não é. Não é inevitável a total mercantilização de nossos dados. Podemos, sim, criar grandes sistemas colaborativos abertos, até mundiais. Nas redes, como nos lembra Michel, a coordenação se faz por sinais, como entre insetos, e não por “ordens” ou preços, como o que nos impõem as megacorporações econômicas e financeiras do mundo digital privatizador[ii]
O desafio é de monta! Associar a criação de comuns ao uso inteligente de redes digitais – como estamos fazendo nestes dias de confinamento físico – nos abre portas inimagináveis. Até construção de pensamento estratégico de transformação radical desta civilização destruidora em termos ecossociais, racista, machista, discriminadora e opressora se torna possível desde nossos refúgios. A hora é de ousar e ser muito criativos. Nada de baixar a cabeça. Panelaços de um lado, criatividade na reinvenção da sociabilidade e outro mundo de outro.
Estamos vivos enquanto sonhamos e acreditamos que outro amanhã, bem mais humano em termos ecossociais, é possível.
Rio, 29 de março de 2020
 
[i] Diego Cunha, na Carta Maior de 19/03/2020.
[ii]Michel Bauwens é o fundador da Fondation P2P (Peer to Peer Fondation), uma rede internacional  de pesquisadores para promover a emergência de uma nova economia centre sobre a “produção entre pares”. É o editor chefe da revista Wave (cultura digital) e autor do livro “Sauve le monde: Vers une société post-capitaliste avec le peer-to-peer”.

Tradução »