Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Há muito pouco tempo descobri que escrever tem sido uma forma de eu me situar diante dos desafios pequenos e grandes que todos enfrentamos no cotidiano. Criei o hábito de escrever para praticar a liberdade de pensar ainda na adolescência, numa instituição a seu modo totalitária e castradora, como era um seminário capuchino do final dos 50 e início dos 60, do século passado. Reconheço que devo ao seminário a disciplina intelectual e uma boa escola (ginásio e colegial da época). Na época, eu escrevia para mim mesmo, um diário, em cadernos que foram se acumulando, sem ninguém ler, já que isto era vedado. Escrevi páginas e páginas sobre meu drama no singular. Gradativamente, porém, fui levado a pensar o mundo, já que o mundo invadia o seminário, com as ideias de Paulo Freire e a educação popular, com os Centros Populares de Cultura, com a Teologia da Libertação e o Vaticano II, com a Revolução Cubana e com tudo o que se passou no Brasil e que nos levou a 24 anos de ditadura militar. Eu mesmo fui me libertando e em 1966 mudei definitivamente o rumo da minha vida. No meu sonho tratei de ganhar o mundo para transformá-lo, por assim dizer.
Muita coisa se passou desde então, mas nunca mais deixei de escrever. Ainda faço um diário, um tanto irregular, nas manhãs, durante o inseparável chimarrão, na Chácara Iru, meu refúgio ecológico e camponês. Meu diário ainda é para o livre pensar, cada vez mais com observações sobre o ritmo da vida, de todas as formas de vida, neste nosso grande comum, o planeta Terra. No caso, meu ponto de observação e prática é a própria chácara, as plantas, as flores, as sementes e seus segredos, os pássaros, o sol e a chuva, o passar dos dias, meses e estações. Mas, hoje escrevo mais artigos de sociologia política e pequenas crônicas de observador engajado, uma espécie de dever de ofício, a partir do Ibase. No centro, porém, continuo fazendo um esforço de sistemática reflexão sobre aspectos desafiantes, perturbadores ou encantadores, mas que podem dar sentido e pistas para ir levando a vida com dignidade. Tento ficar ligado, mesmo sempre dialogando com alguns gurus que, reconheço, constituem uma espécie de infraestrutura mental pessoal (Gramsci, Arendt, Marx, Hans Jonas, Celso Furtado, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Milton Santos, Lucien Goldman, Kant, entre tantos outros), apimentada por uma história de vida, como todo mundo por sinal. Assim, escrevo com um olhar e um modo de ver condicionados por onde estou o que faço e fiz na vida, pela formação e prática de analista e, especialmente, pelo modo de exercer meu ativismo cidadão com opção pela democracia radical.
Uma tão longa introdução nesta crônica nada mais é do que uma justificativa diante de uma espécie de bloqueio que o momento atual tenta impor, ao menos para mim. Não é por falta de acontecimentos. Aliás, para onde a gente olha vê muita coisa se movendo: no Rio de Janeiro mergulhado em uma espécie de falência das loucas apostas nos royalties do pré-sal, dividindo entre as faraônicas Olimpíadas e um violência larval que supera qualquer limite, no Brasil de divórcios, traições e roubalheiras, com legalidade, mas sem legitimidade cidadã, na América Latina de fim de um período de renovadas esperanças, na União Europeia em processo de desunião, na guerra de fundamentalismos no Oriente Médio e Sudeste Asiático, na África ainda mais esquecida e entregue à sua própria sorte, num mundo de extremistas de direita pregando sua intolerância e racismo sem pejo, como nos EUA e Europa, dos milhões de migrantes sem eira nem beira. Enfim, o mundo se move e como se move!
Mas para onde vai isto tudo? Estamos mergulhados em perplexidades e incertezas, numa neblina densa já virando nuvem carregada, do local ao mundial. Faltam sonhos e ideias generosas de outro mundo, que aglutinem ao invés de desagregar, como estamos vendo cotidianamente. Parece contraditório o que afirmo diante de tudo o que penso e faço, mas devo reconhecer que nos faltam grandes pensadores para sintetizar as angústias coletivas e lhes dar um sentido positivo. Faltam líderes que expressem estas ideias. Estou enganado? Gostaria que alguém apontasse um ao menos. Momentos assim anunciam tsunamis políticos. Oportunistas e aventureiros, salvadores da pátria, prosperam em momentos assim. Algo catastrófico pode acontecer. Foram tais situações que geraram as condições para as grandes guerras mundiais, só para lembrar momentos não tão distantes assim na história humana.
Minha crônica tem o sentido de compartilhar uma angústia. Posso estar enganado. Gostaria de estar enganado. Em função do Fórum Social Mundial, acabei participando de duas iniciativas de reflexão muito instigadoras, que me marcaram profundamente: o International Forum on Globalization, em São Francisco, e uma iniciativa de criar movimentos mundiais de cidadania de um grupo de pensadores profundamente envolvidos na reflexão sobre as possibilidades e buscas de oportunidades para The Great Transition, com polo no Instituto Telus, de Boston. As ideias em termos de rumos possíveis para enfrentar a crise civilizatória e destrutiva do capitalismo, compartilhadas pelos pequenos grupos envolvidos de que tive a chance de fazer parte, são até hoje algo do mais estimulante em termos teóricos e políticos. O problema é que só ideias não bastam. História real se faz com sujeitos políticos coletivos, convencidos sobre as ideias mobilizadores e que se tornam seus portadores. Grandes movimentos de cidadania são a força real de transformação na história. Isto não conseguimos inventar, pois tal tarefa transcende em muito meras iniciativas intelectuais, por mais iluminadas que sejam. Faltou conexão com resistências e insurgências pelo mundo. O Fórum Social Mundial parecia ser o berço promissor de movimentos cidadãos de dimensões planetárias, mas também perdeu inspiração e capacidade de animar o nascimento de grandes movimentos para enfrentar o desastroso caminho para o desastre e, até, a implosão da integridade da vida e do planeta.
Em todo caso, vale compartir aqui análises e debates que tive a oportunidade de participar. Trabalhávamos com três cenários políticos possíveis para a humanidade neste ainda começo do século XXI. O mais provável, para nós, era que tudo permaneceria sem grandes mudanças na força determinante do modo de viver que se impôs ao mundo todo: a globalização capitalista, com o seu produtivismo e consumismo a serviço da acumulação privada, com mais e mais desigualdade e com destruição ambiental, sendo a mais próxima a mudança climática de grande impacto. Outro cenário seria o da grande transição, de um processo de transformações desde aqui e agora, os mais democráticos possíveis – para todos uma revolução abrupta não tem nenhuma viabilidade -, processo que pressupõe a geração de movimentos mundiais irreversíveis e da criação de um pacto de mudanças como condição sine qua non. Este cenário parecia aos participantes das inciativas o menos possível. O terceiro cenário, também visto como pouco provável, é o do caminhar para barbárie sem freios.
Bem, escrevo com a angústia de quem está diante da possibilidade da barbárie estar à porta. É tal a sensação, mais do que uma análise profunda, que me leva a afirmar que estamos diante de uma grande nuvem – que envolve o planeta Terra inteiro – de perplexidades e incertezas. Afirmo isto porque vejo mais intolerâncias e fundamentalismos descontrolados dominando a cena, do local ao mundial. Com guerras já convivemos, ainda mais que as novas tecnologias de informação e comunicação criam um clima de simultaneidade e de estar na arena da guerra e sofrendo junto. Pior é constatar que os arsenais nucleares estão superativos e, hoje, fora de controle. Por incrível que pareça, alguém que dá alguma luz nas trevas em que o mundo caminha parece ser o papa Francisco, apenas um líder espiritual e ético de católicos, longe de ser unanimidade no cristianismo e muito menos entre outras grandes religiões. Que momento difícil!
Diante deste quadro, o drama que vivemos no Brasil parece fichinha. Na verdade, é parte da mesma lógica. Sou levado a afirmar que estamos encurralados no Brasil e no mundo pelo afã de um punhado de grandes corporações econômicas e financeiras com estratégias globais de domínio. Segundo dados de Ladislau Dawbor, em artigo recente da Carta Maior, um pouco mais de 730 delas controlam 80% dos 43 mil grupos atuantes no mundo (40% nas mãos de menos de 150 delas). Somente 28 grupos gigantes financeiros têm ativos de 50 trilhões de dólares, equivalente à dívida pública de todos os países do mundo.
O que fazer diante de um mundo dominado de tal modo? A gente precisa acreditar que tudo pode mudar, assim como um dia foi feito. Mas está difícil! A grande nuvem que invade o mundo ofusca a visão das brechas de possibilidades de mudança, mas, sobretudo tenta nos fazer crer que outro caminho não existe.