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Área indígena protegida na Bolívia é ameaçada por construções financiadas pelo BNDES

Por Gustavo Soto Santiesteban*
O TIPNIS (Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure) é uma área protegida por ser território indígena e parque nacional, de acordo com a Lei do Meio Ambiente e a Constituição. O parque nacional nasce com o Decreto 07401 de 22 de novembro de 1965, que em seu preâmbulo afirma “a necessidade de conservar as bacias hidrográficas, as nascentes dos rios para a navegação, a riqueza dos recursos naturais e a beleza cênica, que poderiam ser afetadas pela construção de um caminho seguindo a borda do sopé e pela colonização”.
A nula institucionalidade do Estado boliviano, ontem e hoje – nacionalista, neoliberal ou evista – tem omitido esse decreto, favorecido e permitido várias e sucessivas invasões desse parque para fins de cultivo de folha de coca (década de 1980) e de exploração de petróleo (desde os anos 1960). A colonização para o monocultivo da folha de coca, que implica no uso intensivo do solo e de agrotóxicos, já destruiu uma parte significativa do parque, e um cenário que inclui a estrada é absolutamente catastrófico.
No contexto regional e nacional, o TIPNIS tem uma enorme importância ambiental, por ser uma área que regula o espaço biogeográfico de sopés da Amazônia. Tem funções chaves para a regulação, distribuição e armazenamento dos fluxos hídricos naturais e do sistema em geral. Também contém áreas fundamentais de conservação: sopés de morros e pampas, com um altíssimo valor de conservação (por exemplo, as zonas úmidas fundamentais dos Pampas de Beni). Seus recursos naturais derivados de biodiversidade estão em bom estado e preservam várias espécies (por exemplo, o cervo do pântano). Esta situação é resultado da presença de um modelo socioeconômico sustentável e adaptado aos ecossistemas e à dinâmica ambiental: o modelo indígena, que, diferentemente de outras regiões do país, permite um alto grau de segurança alimentar e um grau menor de articulação a lógicas produtivistas do mercado local.
Existe um contrato de petróleo (lei 3672 de 23 abril de 2007) na área de exploração do Rio Hondo, firmado com a Petrobras Bolívia (50%) e Total E&P Bolívia (50%), por 30 anos a partir de 2007, que cobre mil hectares, nos departamentos de Beni, Cochabamba, La Paz e também afeta o noroeste do TIPNIS.
Sem consulta livre, de boa fé e orientada ao consenso, o governo firmou um contrato com um prêmio de mais de US$ 100 milhões com a Organização dos Estados Americanos (OEA), para atravessar o coração do TIPNIS, no ano de 2008, e se endividou com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em US$ 332 milhões, com o patrocínio do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que inaugurou o projeto no Chapare com Evo Morales, no ano de 2009.
Esta breve recapitulação permite entender por que o 29º Encontro do Território Indígena e Parque Nacional Isidoro Sécure decidiu “rechaçar contundente e inegociavelmente a construção da estrada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos ou todo o curso que afetar nosso território”, no dia 18 de maio de 2010, há poucas semanas da Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra, em Cochabamba, na Bolívia. Nisso consiste seu próprio desenvolvimento, como estipula a declaração da ONU sobre direitos dos povos indígenas ou, como diz a Constituição, este é seu Bem Viver, sua Montanha Santa dos povos do TIPNIS. Essa decisão comunitária é ratificada no 30º Encontro realizado no fim de julho deste ano, com a troca dos líderes (Fernando Vargas por Adolfo Moye), quando foi decidida a Marcha pelo Território e pela Dignidade, da qual participa toda a comunidade. Como agravante, o Informe de Avaliação Ambiental Estratégica 2011, encomendado pelo governo boliviano, apresentou a essa assembleia observações de grandes riscos da construção da estrada, da penetração do cultivo de coca e da exploração de petróleo na área.
Nosso Grande Irmão
A Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), lançada por Fernando Henrique Cardoso e pelos governos neoliberais do final dos anos 1990, para integrar a região à globalização capitalista, com enormes investimentos em energia, transportes e comunicações, foi retomada pela União de Nações Sul-americanas (UNASUL) sob o nome de Conselho Sul-americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) em 2011, sob a liderança do BNDES. O BNDES é o banco estratégico para a constituição de oligopólios e da internacionalização das corporações brasileiras (Odebrecht, Andrade Gutiérrez, OAS, entre outras). Em 2010, pagou R$ 162 bilhões, mais do que a Corporação Andina de Fomento (CAF), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, juntos.
Na Bolívia, o apetite brasileiro não se restringe ao gás, mas também se refere a estradas, barragens e aos investimentos no agronegócio. Assim, por exemplo, no Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, quatro represas dão a possibilidade para a indústria brasileira de ter quase dez mil megawatts (MW). Duas destas quatro empresas foram construídas em território boliviano. Uma delas, Cachuela Esperanza, gerará energia a três vezes o custo atual no sistema interconectado da Bolívia e 50% mais alto que o custo de produção de Jirau. A área inundada será quase duas vezes maior que as áreas inundadas por Jirau e Santo Antônio, juntas, e gerará apenas um terço de sua energia. Contribuirá com o aquecimento global, gerando mais gases de efeito estufa e não responderá às necessidades energéticas urgentes das populações do norte boliviano. Aumentará a dívida externa da Bolívia para o Brasil em mais 2 bilhões de dólares, convertendo este país em nosso credor principal. Os especialistas suspeitam que Cachuela Esperanza é uma represa destinada sobretudo a reter o sedimento para o lado boliviano, para que no lado brasileiro Jirau e Santo Antônio tenham maior vida útil.
Este é o maior interesse brasileiro, maior do que a estrada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos. Essa rota é parte secundária do Corredor Norte no Peru-Brasil-Bolívia, que liga a Amazônia boliviana e o estado de Rondônia, no Brasil, com o Pacífico. Essa estrada é o custo do apoio político de Lula ao governo de Evo Morales em sua primeira gestão. Essa hipótese tem alguns fortes indícios recentes vinculados à chegada de Lula na semana passada pelos bons ofícios da empreiteira brasileira OAS, que também é acusada de preços abusivos. Quanto será a cifra da corrupção – e do fortalecimento das clientelas políticas – no caso da construção da Cachuela Esperanza?
Você aceitaria, sem protestar, que um trator passasse pelo meio de seu jardim?
Nessa espécie de último jardim, confluem os poderes do narcotráfico crescente na Bolívia – que requer zonas de expansão do cultivo de coca –, os interesses das transnacionais petroleiras, o apetite por terras da clientela política do evismo e a geopolítica regional da potência emergente brasileira.
Dada essa pavorosa correlação de forças, se consideraria sensato que 63 comunidades ribeirinhas dos rios Isiboro, Ichoa, Secure (menos de dez mil pessoas de três culturas amazônicas) tenham se posto a lutar pelo cumprimento de seus direitos coletivos e os da Mãe Terra.
Parecia ainda menos provável que em menos de um ano de reuniões, fóruns, entrevistas, homens e mulheres do TIPNIS, representados por Adolfo Moye, jovem músico Mojeño, tenham conseguido visibilizar o problema, articular aliados urbanos, convencer todos os outros povos amazônicos, superar a cooptação política  e começar a oitava marcha para decidir por seu modo de vida e por um novo paradigma. É também extraordinário o papel das mulheres indígenas como motor e clamor da marcha: Justa Cabrera, Yeni Suarez, Nelly Romero, para nomear apenas três. É novo e esperançoso o lento, porém incessante, apoio de mulheres jovens urbanas, umas decepcionadas com o governo e outras recém-chegadas à vida política, com uma sensibilidade ecológica autêntica.
Frente a esta demanda de autenticidade e coerência de discursos e leis com as práticas, frente a seu desmascaramento crescente, o governo começou insultando mulheres indígenas, ordenando seus agricultores a “deixá-las para convencê-las” a aceitar a violação de seu território. Logo, recorreu ao velho expediente da guerra psicológica: calúnia, intimidação e escutas telefônicas, assédio de líderes, ameaças a organizações da sociedade civil, aos gringos. Recorreu semanas atrás a mover seus grupos de choque colonizadores para bloquear a marcha e cercá-la em Yucumo.
O governo tentou dividir a marcha, setorializando as demandas, que confluem todas no coração da autodeterminação: o Território e a Consulta. Nas últimas semanas, recorreu inabilmente e em vão ao paralelismo da representação indígena para montar “consultas” desprovidas da menor credibilidade. A meia dúzia de viagens dos ministros à marcha, para plantar o tom de ultimato de Evo de que “sim ou sim” se faria a estrada, serviram unicamente para preparar o cenário à intervenção policial, pois “demonstravam” que a marcha era política, intransigente. No sábado (24/09), montaram um show para denunciar o sequestro do chanceler e assim justificar a repressão. Em menos de uma hora era sabido que mulheres indígenas eram obrigadas a andar até Choquehuanca na frente da marcha para facilitar o caminho de um dos dois anéis de polícia. No domingo, enquanto preparavam para compartilhar a comida, foram cercados, gasificados, espancados, a brutalidade anti-indígena e contra as mulheres está em centenas de sites e apontam para o fim do embuste do evismo.
Mas há um momento epistemológico fundamental nesses dias: o líder de um grupo de camponeses andinos afirmou com surpresa que não entendia por que os do TIPNIS queriam seguir vivendo como selvagens e rechaçavam o desenvolvimento. Ele fez a maior contribuição para as ciências sociais na Bolívia, mostrando que o racismo e o colonialismo são um continuum de posições, em vez de uma binária e elementar contradição; que o mito propagado do desenvolvimento há séculos por “esquerdas” e direitas é a mentalidade dominante no “Estado plurinacional” e que o TIPNIS vislumbra novos horizontes.
*Gustavo Soto é integrante do Centro de Pesquisa de Estudos Aplicados em Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CEADESC). E-mail: gsoto@ceadesc.org

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