Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Muito se tem falado e escrito sobre as recentes eleições municipais, quem perdeu, quem ganhou, o que esperar das majoritárias de 2022, o péssimo desempenho dos candidatos apoiados por Bolsonaro, as conquistas de partidos da direita “civilizada” – qualificada pela grande mídia de “centrão” –, o aparecimento de lideranças novas na esquerda como Guilherme Boulos e Manuela D´Ávila, entre tantas outras. Sem dúvida, análises possíveis e, sobretudo, reveladoras das narrativas e disputas políticas que qualquer eleição desencadeia no espaço público. Mesmo nossa agredida democracia mostra, a seu modo, que nada acabou e que tudo é possível. Um dia depois de outro, sem definições a priori, é história em construção permanente, por sujeitos em ação, mesmo em meio a grandes adversidades.

Gostaria de destacar aspectos que foram lembradas em algumas análises, mas não foram destacados em seu profundo significado político. Como sinais de cidadania viva podem estar apontando para algo muito novo e com potência transformadora desde aqui e agora. Algo muito embrionário, sem dúvida, mas de onde o poder instituinte e constituinte da cidadania pode estar emergindo. Estou falando do crescimento de candidaturas, pelo país afora, várias vitoriosas, especialmente para vereadores, que se valeram da institucionalidade dos partidos, mas não necessariamente foram abraçadas e apoiadas por eles com os devidos recursos partidários e a visibilidade na campanha. Falo de candidaturas coletivas – novidade radical – e daquelas abraçadas por movimentos como o das feministas, o dos negros e negras, o dos quilombolas, indígenas, LGBTQ+. Enfim, estou me refindo às “periferias políticas”, às ignoradas e maltratadas periferias sofredoras de histórica e estrutural desigualdade social que carregamos e que são tratadas com desprezo ou mesmo ignoradas nas esferas dominantes do poder. O que foi possível constatar no resultado eleitoral é que elas estão crescendo em potência e voz, mesmo com toda adversidade do desgoverno atual, da pandemia e da crise econômica. Ainda fenômeno a seu modo visto como periférico, sem grande significado, mas que prefiro considerar como grande portador de esperança, capaz de ser uma importante força de renovação da nossa combalida democracia.

Este é um fenômeno que pode ser portador de renovação profunda, para além da institucionalidade partidária atual, com seus caciques e clãs familiares ou com estruturas que se sustentam desgarradas da vitalidade cidadã, mal que vem contaminando e fragilizando até a esquerda, que foi fundamental na derrocada da ditadura, lá nos anos 1980. Ressalto, porém, que algo do que estou falando como demonstração da cidadania viva, atropelando partidos, aconteceu com o abraço das periferias à candidatura de Boulos-Erundina em São Paulo, com Manuela em Porto Alegre e com Edimilson em Belém, muito além de suas máquinas partidárias. No entanto, meu foco aqui é mais nos sinais do novo de um ponto de vista cidadão. Afinal, o que isto tudo nos mostra da própria situação dos que sofrem exclusão e desigualdade social? Estou querendo ver os novos sinais para a democracia.

Parecia que, com a enorme crise e a pandemia, nada vinha acontecendo nos sofridos territórios periféricos. Na verdade, há um mundão vivo que escapa do radar dominante e que poderá nos surpreender em breve. As situações são desoladoras e o sofrimento de famílias e comunidades inteiras é grande. Mas se tecem novas solidariedades e redes, com novos atores. Fiquei surpreendido com a multiplicidade de novas iniciativas nas periferias urbanas, com protagonismo de coletivos que se multiplicam em favelas das grandes cidades, muitas contando com alianças estratégicas com organizações solidárias de instituições da sociedade civil e academia. Foi durante uma apresentação em live organizada por ABONG/FASE sobre “Mapeamento de ações emergenciais e da incidência da sociedade civil na pandemia”. São experiências que chamam atenção pelo ativismo digital, novas formas com novos atores sendo inventadas, algo que vai muito além da crise sanitária, e de grande significado. Há muita vida cidadã sendo alimentada, além da fome e das necessidades básicas. Não é meu objetivo detalhar isto, mas situar tais movimentações no que chamo de sinais de cidadania viva.

Pensando nisso tudo, acho que poderemos ser surpreendidos com insurgências cidadãs mais cedo do que tarde. O auxílio emergencial do governo está acabando e muita gente vai ficar jogada numa situação muito difícil, dado o monumental desemprego e a precariedade a que praticamente mais de metade da força de trabalho está condenada. Mas existem sinais de solidariedades emergentes que podem explodir na arena pública e exigir respostas. Acho que muito do que chamo aqui de cidadania viva, expresso nas eleições, veio para ficar e pode se expressar como força de renovação. Acho que os poderes constituídos, do local ao nacional, serão cobrados muito antes das eleições de 2022. Aliás, a situação geral em que se encontram os territórios e suas cidadanias não é somente de sofrimento, mas de coletivos que se renovam e que vão exigir direitos fundamentais, se não amanhã, depois de amanhã. Vejo aí algo que pode mudar profundamente o que parece um jogo de cartas marcadas por forças políticas que dão as costas à cidadania e suas demandas. Assim como muitas análises, a minha pode estar distorcida pelos desejos e vontades, mais do que por exame profundo de relações, estruturas e processos. Mas nunca a história é lógica, sem imaginações e vontades em ação. E estas estão vivas, basta querer ver.

Rio de Janeiro, 18/12/2020

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