por Athayde Motta, diretor do Ibase*
Aprovado pela Câmara dos Deputados, no último 13 de maio, o projeto da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental segue para votação no Senado Federal. Se não houver alterações e for aprovado, dependerá apenas da sanção presidencial para ser o marco de mais um retrocesso no âmbito da defesa do meio ambiente e das riquezas naturais do país – além de grave ameaça à vida dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Não se trata apenas de uma mudança na legislação, mas sim do sepultamento de qualquer tipo de interferência da sociedade civil organizada na esfera socioambiental. Temos um exemplo a dar: há dois anos o Ibase fez um estudo sobre a participação popular na governança das indústrias extrativas no Brasil e só existiam duas instâncias formais onde essa discussão poderia acontecer. Uma delas, no licenciamento antes da aprovação do empreendimento; a outra, nas condicionantes ambientais feitas depois da aprovação do empreendimento.
A questão é que a implementação dessas condicionantes é um processo extremamente frágil. Portanto, se não houver mais licenciamento, não haverá participação alguma e empresas de mineração, óleo e gás estarão livres para atuar à vontade. É importante destacar que o processo formalmente conhecido como Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado (CCLPI) só pode acontecer durante o processo de licenciamento. Sem essa possibilidade, só estão garantidos o lucro e a destruição. Nenhum desenvolvimento real, de qualquer tipo, acontecerá de fato.
O direito à CCLPI – que recebeu proteção jurídica nacional com a ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo Decreto Legislativo nº 143 de julho de 2002, em vigor desde julho de 2003 – baseia-se no reconhecimento dos direitos humanos fundamentais dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em decidir livremente sobre seu presente e futuro como sujeitos coletivos de direitos.
O Artigo 6º da Convenção 169/OIT determina que é preciso consultar cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas que afetem povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. “…antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) diz que, para ser prévia, a consulta deve ser feita no início do planejamento do projeto, plano ou medida correspondente. No caso de medidas administrativas complexas, como o licenciamento de grandes empreendimentos do setor extrativo que envolvam múltiplas decisões e autorizações, surge a questão sobre o momento exato da consulta.
Além de ser prévia, tanto a Convenção 169/OIT quanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) entendem que a CCLPI deve ter caráter culturalmente apropriado, conforme as tradições, costumes e métodos tradicionais de decisão e por meio das instituições representativas dos atingidos. Também deve ser realizada de boa-fé, ou seja, com confiança, transparência e respeito entre as partes e deve ter um caráter livre de qualquer pressão. Isso significa que os sujeitos interessados não podem ser coagidos para decidirem em determinado sentido, quer seja pelo poder do Estado, pelo uso da força, por pressão de empresas ou pelo oferecimento de vantagens pessoais.
Mesmo com reconhecimento formal, inclusive pelo Poder Judiciário, o direito à CCPLI enfrenta vários problemas para sua aplicação efetiva no Brasil. No que se refere à antecedência ao processo de licenciamento ambiental, a consulta está prevista para acontecer somente após a tomada de decisões estratégicas na viabilização de projetos, como a aprovação da primeira licença ambiental.
Povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais vêm denunciando o reiterado descumprimento do direito à CCPLI pelo Estado brasileiro, destacadamente com relação a empreendimentos e outras medidas de grandes impactos sobre suas terras, suas vidas e seus direitos. O caso do Projeto Volta Grande – Mineração de Ouro, da empresa canadense Belo Sun Mining Corporation, é um deles. Previsto para ser instalada na Volta Grande do Xingu–região de maior incidência de impactos diretos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o projeto impacta os povos indígenas e famílias ribeirinhas.
No âmbito do Poder Executivo, é clara a contradição entre o reconhecimento formal do direito a CCPLI e sua garantia efetiva. Encarada como mera formalidade burocrática, a consulta muitas vezes aparece como um acessório prescindível em decisões já tomadas. Nas medidas legislativas encontra-se a mais grave situação de violação do direito à consulta. Protagonizada pela bancada ruralista, está em curso atualmente no Congresso Nacional a maior ofensiva legislativa aos direitos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais desde a Constituição Federal de 1988. Na contramão dos protocolos autônomos de consulta e sob protesto dos movimentos sociais e das instituições que apoiam a CCLIP, por exemplo, temos o governo do Pará, um dos estados em que há mais empreendimentos do setor de mineração e protocolos próprios elaborados por comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas, lançou o Decreto 1.969, de 24 de janeiro de 2018, que “institui Grupo de Estudos incumbido de sugerir normas procedimentais voltadas à realização de consultas prévias, livres e informadas aos povos e populações tradicionais” sem ouvir os povos indígenas. Sim, vale repetir: sem ouvir os povos indígenas.
Se é essa a situação atual a que estão expostos os povos indígenas, tradicionais e quilombolas – encurralados pelo poder econômico e enfraquecidos pela pandemia de coronavírus – o que restará desses grupos se nem mesmo o licenciamento ambiental for necessário antes de um empreendimento que irá impactar suas vidas?
Nosso compromisso como organização de cidadania ativa será sempre o de denunciar e trazer a público qualquer ameaça aos direitos humanos e, especificamente nesse caso, de participação da sociedade civil organizada em uma mudança que não será apenas em uma lei burocrática. É preciso somar forças e buscar apoio para impedir o fim de populações inteiras, com suas culturas e legados, e defender os direitos da natureza; garantindo também um desenvolvimento sustentável e inclusivo, que respeite a vida acima do lucro.
*artigo elaborado a partir do estudo “A participação cidadã na gestão dos recursos naturais não-renováveis (petróleo, gás e minérios): o caso brasileiro.”, realizado pelo Ibase em 2019, com a colaboração de Athayde Motta, Nahyda Franca e Luisa Godoy Pitanga, para o projeto Controle social das indústrias extrativas no Brasil, apoiado pela Fundação Ford.