Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Começamos o ano com a sensação de tragédias em série. De repente, tudo parece fora de lugar, fora dos trilhos. Algumas tragédias esperadas, como o começo do novo governo Bolsonaro. Mas ninguém imaginava algo assim: um grupo seleto de generais dando um mínimo de coerência nos bastidores, uma agressiva proposta de capitalismo selvagem na economia e de democracia para poucos na esfera jurídica, com um desconcertante conjunto de ministros em outras áreas, com agendas e falas fora do tempo e do lugar, como nas relações exteriores, educação, direitos humanos e meio ambiente. A prometida política de menos Estado e mais livre mercado já deu um grande alerta do que pode acontecer em diferentes territórios da cidadania do Brasil: a destruição e morte em Brumadinho. A isto se soma o tórrido verão com suas devastadoras tempestades, sinais de mudança climática que o novo governo nem admite como evidência científica. E temos as tragédias cotidianas de violência e morte, aumentadas pelo “liberou geral”, seja contra as mulheres ou contra as e os moradores das grandes periferias socialmente segregadas pelo racismo e pobreza, seja contra indígenas, quilombolas, posseiros e sem terra. Agora já podemos nos armar para nos matar mais facilmente, de acordo com uma das primeiras medidas do novo governo. Onde vamos parar com isto?
Mundo afora, nada para inspirar e muito para preocupar. Parece que a Terra foi invadida de repente por monstros. Quase em surdina, enquanto isso, avança o projeto da “Grande Eurásia”, sob liderança da China de capitalismo de Estado, em aliança com a ressurgente Rússia e seus poderosos arsenais nucleares. A aberta disputa entre o já decadente imperialismo dos EUA, do também patético Trump, diante da rápida ascensão da China, paira como ameaça de hecatombe nuclear sobre a humanidade e o Planeta Terra. O que fazer neste mundo, hoje, como simples cidadão, apenas um incógnito entre mais de sete bilhões de seres humanos, mas teimoso em pensar e agir apesar de tudo?
Tenho tentado me refugiar em leituras – são muitos livros e artigos na espera – tomando distância da conjuntura. Até nem consegui escrever minha crônica na semana passada. Mas estou voltando à luta, do modo que sei lutar, escrevendo e tornando público o que penso cá com meus botões, sempre buscando sintonia com a cidadania ativa.
Aqui, quero destacar alguns pontos assinalados por Perry Anderson, um dos mais destacados analistas de esquerda da Inglaterra, sobre o que ele reflete num excelente artigo sob o título de Brasil do Bolsonaro (Bolsonaro´s Brazil). Talvez este seja o artigo mais consistente e mais informado de um analista estrangeiro de esquerda sobre o que se passou no Brasil e dos desafios que temos pela frente. Pessoalmente, fico grato ao autor por situar sua avaliação de Bolsonaro de uma perspectiva crítica, mas respeitosa ao que fez, significou e significa o PT como uma grande novidade de esquerda no espectro mundial. Não vou me ater a tudo o que concordo como avaliação sobre a história do Partido dos Trabalhadores e de Lula no governo. Limito-me ao que o artigo aponta como questões para frente. De toda forma, vale registrar aqui que o texto mereceria ser traduzido e servir como um subsídio à educação popular, algo que deixamos de fazer e que é urgente que voltemos, sine qua non não poderemos voltar a sonhar com protagonismo da cidadania em nosso Brasil, apesar de Bolsonaro não concordar.
Vou direto ao que considero as conclusões da bem lúcida análise de Perry Anderson sobre o “Brasil de Bolsonaro”.  Sua análise é em comparação a outros monstros, como ele chama, que assolam a humanidade hoje em dia, como Trump, Le Pen, Salvini, Orbán, Kaczynski e tantos outros. Alguns pontos preliminares, que considero fundamentais na diferença com outros processos políticos em curso no mundo, são:

  • A volta dos militares para uma liderança política destacada, trinta anos após a ditadura militar.
  • A confiança dada aos mercados com a indicação de Guedes e sua equipe de neoliberais radicais, com destaque para a reforma de previdência, na qual a desigualdade é a menor preocupação, mas sim seu peso no orçamento público.
  • Perry Anderson não avalia o governo Bolsonaro como uma versão contemporânea de fascismo. Ele lembra que o “Fascimo foi uma reação ao perigo de revolução social em tempos de ruptura e depressão econômica. Ele se baseava em quadros dedicados, movimentos de massa organizados e possuídos de uma ideologia articulada.(…) Bolsonaro pode vencer uma eleição. Mas é ínfima alguma infraestrutura organizada em torno a ele e não se faz necessária nenhuma repressão de massas, já que não há oposição de massas a ele.”
  • Apesar do racismo ser uma questão no Brasil, Bolsonaro “… obteve uma grande apoio eleitoral na comunidade negra e parda, e isto não tem nenhum risco de parecer um equivalente à retórica anti-imigrantes do Norte do Atlântico”.
  • Bolsonaro é um nacionalista diferenciado. Ele não é inimigo do capital externo. Trata-se de um “populismo entreguista”, expressão adotada pelo próprio Anderson, de um nacionalismo disposto a entregar o patrimônio nacional aos bancos e corporações globais. “O nacionalismo de Bolsonaro (…) toma a forma de virulentas falas de anti-socialismo, anti-feminismo e homofobia, excrescências alienígenas para a alma brasileira.”
  • “(…) Bolsonaro conquistou o poder efetivamente pelo que é, sem nenhum apoio institucional para a eleição. Uma vez eleito…, porque não pode, ele não poderá governar sem levar em conta as instituições em sua volta, como Trump tentou fazer.”

Todos os trechos são fruto de tradução livre feita por mim.
No final do artigo, Perry Anderson dedica um espaço para avaliar o PT, a sua experiência como governo e o Lula como líder emblemático do partido. Para mim, é a parte mais importante de sua análise. Ele faz uma avaliação positiva e até amigável, ao mesmo tempo, profundamente crítica do petismo e do lulismo, sempre bem fundamentada, como é seu estilo de exímio pesquisador histórico. Vou me limitar a destacar um ponto fundamental, como risco de descontextualizar sua análise.
Ele situa a sua fala no quadro institucional da democratização do Brasil, de não ruptura, de transição da ditadura para a democracia, e o que isto significou para o que tenho chamado de democracia de baixa intensidade entre nós. A questão que Anderson destaca talvez seja a mais estratégica: a adoção de uma governabilidade de conciliação, incapaz de viabilizar democraticamente processos transformadores de estruturas sociais de exclusão, desigualdade social e destruição, agora na minha análise. Mas a questão é que o PT sinalizava para a transformação e ele renunciou a fazê-la. Por que? Perry Anderson aponta algumas pistas.
“Por doze anos, o Brasil foi o único país grande no mundo a desafiar a época, a recusar a aprofundar o regime neoliberal do capital e a relaxar alguns de seus rigores em favor dos mais pobres.” Mas, segundo Anderson, houve um erro na estratégia. Algo que o PT não reconhece como sua responsabilidade: a opção política letal que foi a rendição ao regime de conciliação entre interesses de classe e as forças política constituídas. Nas palavras de Anderson: “No governo, ele rejeitou a mobilização em favor da cooptação; e cooptação – da classe política e econômica brasileira – significa corrupção. Isto foi em sintonia com a sua lógica da estratégica escolha uma vez no governo.” Anderson cita Gramsci nesta passagem, lembrando que entre o consentimento e a força está a corrupção, em situações quando é difícil o exercício da  hegemonia e uso da força é de alto riso. Segundo Anderson, ao renunciar se engajar na busca de hegemonia, que supõe educação popular e organização coletiva, com recusa da coerção, o PT ficou com a corrupção enquanto forma de governabilidade. “Para seus líderes, qualquer coisa diferente parecia ser difícil e arriscada. Corrupção foi o preço do seu ´fraco reformismo`.”
Para concluir, em sintonia com a análise de Perry Anderson, o PT se rendeu ao modus vivendi da política do Brasil. E jogou no cola da cidadania o Bolsonaro com sua patética agenda.
 
Rio, 25/02/2019

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