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O perigoso passo da ocupação militar no Rio de Janeiro

Exército ocupa a favela do Jacarezinho em agosto de 2017 (Foto: Pedro Prado)

Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Confesso meus temores profundos com esta volta do protagonismo militar na política. Isto não rima com democracia. Escaldado desde a juventude com o que significa a truculência dos militares na vida política do Brasil, meus já brancos cabelos ficaram em riste com o anúncio da “Intervenção Federal na Segurança do Rio de Janeiro”. Afinal, desde a instalação do ilegítimo Governo Temer, já estamos vivendo no cotidiano uma sistemática desconstrução de direitos conquistados em todas as frentes e uma economia incapaz de gerar inclusão social. A intervenção na segurança de um Estado Federado, sob o comando de um general com plenos poderes e armamento de guerra, desencadeia uma lógica nova no enquadramento da democracia brasileira para servir aos grandes interesses de mercado. Afinal, isto acontece em ano eleitoral crítico, com muitas indefinições sobre o possível resultado. O pior é que a justificativa é em nome da ordem. Ordem para quem? A ordem democrática já foi despedaçada pelo governo, com apoio de um Congresso dominado por bancadas corporativistas e privatistas e com a conivência ativa do Poder Judiciário.
A segurança para a cidadania do Rio vem se deteriorando de forma assustadora como, aliás, ocorre em grande parte das grandes regiões metropolitanas brasileiras. É urgente mudar tal quadro, aqui e no país inteiro, sem dúvida. A área da segurança foi a que menos mudou com a democratização conquistada há três décadas. Mas isto não se faz com mais repressão e nunca com uma militarização ainda maior, definitivamente. Os presídios do país estão cheios – temos a terceira maior população carcerária do mundo (para algo como 3% da população mundial) – e, no entanto, a violência cresce e se expande. Os presídios brasileiros revelam o câncer da nossa segurança: estoca-se gente pobre sem julgamento, em sua grande maioria formada por jovens negros. No centro, a criminalização legal e a política da droga, geradora do tráfico aqui e no mundo inteiro. A isto se associa a segregação racial e social, que está na nossa gênese como nação. O crime está longe de ser algo associado à pobreza e aos jovens negros, como se afirma nos meios oficiais, entre classes dominantes e extratos médios abastados, referendados pela grande mídia. O fato é que o grande crime tem outra origem, é praticado pelos de colarinho branco, que tem a seu favor a impunidade e as vantagens do poder, além do monopólio do discurso. No final, os nossos presídios não passam de escolas para desesperados e espaço de recrutamento para o crime armado do negócio ilícito da droga, tornado ilegal.
Segurança significa ter direitos de cidadania, direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de compartir os bens comuns da coletividade. Ter cidadania é ter o direito de ter direitos iguais. Não preciso citar estatísticas aqui para mostrar que a exclusão social e a condenação a viver sem direitos é nosso maior problema como país e que tal situação se deteriorou de forma radical nos últimos anos.  Não precisamos de ordem repressiva, precisamos da ordem que garanta os direitos básicos a todas e todos. Por isto, a democracia que merece tal nome é aquela que busca a maior igualdade possível como forma de enfrentar a barbárie que o mercado, o racismo e patriarcalismo nos oferecem. A desconstrução atual de direitos e a imposição pelo governo golpista de um ajuste para as forças de mercado, privilegiando particularmente os interesses financeiros, estão no centro da deterioração rápida da segurança no Rio e em toda parte. Claro, isto não explica tudo, mesmo sendo uma causa fundamental no agravamento da situação no país inteiro.
Mas existe no Rio, sem dúvida, um câncer de grandes dimensões, este sim produzindo metástases, instalado no poder público, particularmente no sistema de segurança. Não vou me ater aqui à corrupção no centro do poder, com personagens já presos ou investigados. Destaco aqui algo que diz respeito diretamente à segurança. Setores das polícias do Rio têm laços orgânicos com os bandos de traficantes e com as milícias armadas que lutam entre si para controlar territórios da Região Metropolitana do estado, todas áreas populares, de favelas e de periferias. É sabido que as milícias são formadas por policiais. O caso do Batalhão da Polícia Militar de São Gonçalo, cidade a aproximadamente 30 km da capital, onde mais de 90 foram presos por envolvimento com o tráfico de drogas, é revelador do tamanho do problema. Mas o que se fez para extirpar tal mal? Muito pouco ou nada! Isto com mais e mais policiais sendo, eles mesmos, vítimas da violência. Sem dúvida, nada a comparar com o número de vidas perdidas de civis de quem lá vive, inclusive de crianças, por “balas perdidas” – na verdade, disparadas para acertar, objetivo do uso de armas de fogo – de quem nada tem a ver com a tal “guerra de tráfico e de domínio do território” entre polícias militares, milícias e traficantes.
Tendo este pano de fundo, que sentido tem a intervenção militar no Rio? Na minha análise, ela tem mais a ver com a lógica dos golpistas instalados em Brasília, de defesa dos privilégios ameaçados do que com a segurança cidadã de quem vai levando a sua vida no Rio. Destaco alguns aspectos, que dão pistas para situar esta tendência de militarizar o golpe institucional de 2016. O que mais me intriga é o fato que a militarização da segurança do Rio foi urdida às escondidas, exatamente na semana de Carnaval, com um governador perdido politicamente e um prefeito ausente. A questão mais importante é o que o Carnaval em si trouxe de novidade. Como maior evento cultural da cidade, com protagonismo de setores populares, foi o protesto ao status quo e às políticas do poder constituído aquele que recebeu entusiástico apoio e repercussão, nacional e mundial, além de premiação como cultura carnavalesca. Isto mostra a reinvenção do próprio carnaval e a vitalidade da cidadania no enfrentamento de seus desafios. Até aqui, este Carnaval do Rio, foi o mais criativo, de maior poder comunicacional e o mais visível e simpático ato de resistência e protesto da cidadania popular ao governo golpista. Penso que a intervenção federal militarizada se tornou urgente diante da revitalização da resistência cidadã manifesta no Carnaval. É possível conter a cidadania? O governo ilegítimo usa suas armas de resposta.
Outro aspecto mais a considerar aqui é a conjuntura política nacional. Está difícil para o governo e seus asseclas no Congresso criar maioria constitucional para aprovar a Reforma da Previdência. Nada como “criar” um motivo maior que impede legalmente reformas constitucionais e esconde a derrota política anunciada. Mas isto deve ser associado às indefinições do processo eleitoral que vai se impondo. Até aqui, os golpistas não têm candidato viável e Lula continua como a maior ameaça, apesar de toda a cumplicidade do Judiciário para evitar a sua candidatura. Será que na militarização localizada no Rio está lançada a semente de uma volta dos militares ao controle do poder político com todo o seu arsenal de guerra? As eleições acontecerão, afinal?
Existem muitos outros aspectos políticos a destacar. Em termos de segurança cidadã, daria para fazer uma recheada lista das fracassadas intervenções militares como forças de apoio à segurança aqui no nosso Rio de Janeiro, desde a Rio-92 até às Olimpíadas e à recente presença em favelas e principais vias de acesso. Mais militares com armamento pesados nas ruas funcionam como alívio para a dor de cabeça das elites e de parte da classe média, custando muito em termos de recursos públicos. Elas alimentam ainda mais a lógica de conflito armado, de guerra e ocupação de territórios, e nada contribuem para enfrentar o verdadeiro câncer da segurança pública, que é a própria corrupção e conivência do sistema estatal com o crime organizado. Trata-se de algo como uma ocupação de território inimigo, quando a questão é reconhecer a cidadania nos territórios ocupados e garantir direitos para todas e todos. Existem urgências cidadãs que continuam ignoradas num Estado dividido entre um fraco governador civil, sem recursos em caixa, e um fortemente armado general interventor para impor a ordem militar, onde se necessita ordem democrática.
Voltando ao meu ponto de partida, temo que a lógica fascista tenha dado um enorme passo entre nós. Armas e poder militar nunca combinaram com cidadania e democracia. Neste caso, será que o desfecho do perigoso passo da militarização poderá ser outro?
Rio, 19/02/18

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