Alagamento na Rua Jardim Botânico após as chuvas que atingiram o Rio de Janeiro (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Para quem vive na cidade do Rio de Janeiro, sentir na própria pele o temporal do início de Abril foi um daqueles eventos monumentais e trágicos, tanto em termos coletivos como em termos de experiência pessoal. Um grande choque para a nossa cidade e a cidadania. Emoção, solidariedade e carinho coletivo não faltaram a todos que abruptamente se depararam com a morte de familiares e amigos. Vendo tantos bairros e milhares de pessoas atoladas em água e lama, que tudo perderam e estão entregues ao deus-dará, a gente se emociona com a autoajuda que brota no meio popular, em meio à calamidade ecológica sobre a cidade e da negação de direitos elementares de cidadania. Há no ar um sentimento de choque coletivo com o tamanho do desastre ecossocial, mas também sinais de uma incrível resiliência social e cidadã.
Levantar, remover entulhos, limpar e sacudir o barro grudado, esquecer as perdas, reconstruir e dar a volta por cima, sem desanimar – para parodiar a canção – é do espírito carioca. Mas isto não basta para evitar que tragédias assim não se repitam de forma cíclica e até com maior intensidade, como nos alertam sobre o processo de mudança climática mais de 95% dos cientistas do mundo. A água e a intensidade de chuvas são intrínsecas ao sistema ecológico do território comum que habitamos. Cabe a nós saber gerir este bem comum, que nos dá vida. Precisamos ver o sistema ecológico da água como parte essencial do nosso modo de viver, antes de ser uma ameaça. Aliás, no cotidiano, o sofrimento maior é devido à falta de acesso regular, contínuo à água tratada e aos serviços de esgotamento sanitário por milhões de habitantes do Rio e Região Metropolitana.
Estamos diante da necessidade de ver, pensar e tratar a água com carinho, como bem comum e direito de cidadania. A tragédia ocorrida revela o quanto não estamos tratando esse bem comum como natural e fundamental. É preciso lembrar que, antes de ser ameaça, a água é essencial para a vida. Aliás, viver é ter uma relação de simbiose com a natureza, de troca e interdependência. Afinal, somos natureza nós mesmos. E a água é essencial em tudo. Não existe forma de vida no Planeta Terra sem água. Nós não a produzimos, mas a captamos e usamos como um recurso dado, um dom da natureza. A maior parte do planeta terra é formada por água, mas a água doce, já sabemos, é um percentual mínimo, menos de 5%. No entanto, é no Brasil, território que nos cabe gerir como um bem comum planetário pela sua riqueza natural, estão os maiores percentuais de água doce do mundo. Além do complexo sistema de rios temos enormes lençóis freáticos no subsolo.
A água forma um estoque dado que, como sistema ecológico, se renova funcionando de forma circular. Mas o ciclo da água depende da própria constituição de nosso planeta, seus polos, continentes, oceanos, mares e sistemas hidrográficos. A água interage com o clima, as estações, os ventos, as emissões de gazes na atmosfera, a sua temperatura nos mares, as florestas e o uso que fazemos da terra e dela mesma, a água. Enfim, a integridade do sistema ecológico da água tem íntima relação com a integridade de outros sistemas ecológicos do nosso planeta.
Hoje, sabemos que está em curso uma perigosa mudança climática devido à ação humana, aos modos como nos organizamos, produzimos e consumimos e intervimos nos diferentes sistemas ecológicos fundamentais da natureza, de que somos parte. Como força ecossocial, a humanidade está comprometendo a própria integridade da natureza que nos dá a vida.  A água e os diferentes sistemas ecológicos que interagem entre si e constituem a integridade da natureza estão sendo violentamente agredidos por nossos modos predatórios de viver. Portanto, um fenômeno natural como as chuvas e as grandes tempestades não são a causa do desastre. Nós é que não estamos sabendo conviver com a água e seu ritmo.
Indo diretamente ao ponto, de modo curto e grosso, a causa da tragédia aqui no Rio de Janeiro, como tantas outras “tragédias naturais” na história da cidade, com sua destruição e morte, com toda a inundação, lama e lixo, com os deslizamentos e desabamentos de prédios, tem origem no modo como produzimos, nos organizamos e gerimos a nossa cidade. A água e a exuberante natureza, com seus eventos extremos, fazem parte do modo de ser carioca e não são exatamente o problema. Elas são nosso patrimônio, nosso bem comum maior. O desastre está na forma segregada, racista e desigual com que historicamente foi construída e está sendo gerida, reproduzida e ampliada nossa cidade. Por sinal, a cidade enquanto tal precisa ser vista e tratada como um bem comum criado na interação entre cidadania e território. A diversidade de modos de fazer e ser cidade em tal relação deve ser nosso orgulho e não nosso problema.
São patéticas e trágicas as visões e reações daqueles que a cidadania elegeu como seus representantes e gestores públicos do bem comum que é nosso território metropolitano, em sua integridade de natureza e criação humana. Em termos simples, falta governo, no sentido profundo de autoridade pública investida pela cidadania para gerir o comum a todas e todos. A causa dos “desastres naturais” é mais social do que ecológica. Precisamos de uma visão e uma prática ecossocial, uma cidadania convicta e engajada para defender bens comuns naturais e criados.
Para concluir, a partir de uma perspectiva de democracia ecossocial, listo os eixos principais que a cidadania – força instituinte e constituinte do poder público, da gestão dos comuns e dos modos de viver – precisa considerar numa agenda incontornável e de longo prazo na reconstrução de nosso bem comum, a cidade e seu território, criando resiliência e capacidade de conviver com eventos climáticos extremos:

  • A segregação territorial, social e institucional que orienta hoje a lógica da construção e vida de nossa cidade metrópole;
  • O racismo como negador do direito a formas de diversidade de ser e viver a cidade;
  • A mudança climática como realidade que pode trazer, especificamente para o Rio metropolitano, chuvas mais e mais intensas e elevação do nível do mar, inundado a maior parte de seu atual território;
  • A necessidade de fortalecer e ampliar a consciência e prática coletiva da cidade como bem comum territorial e cultural na gestão do sistema das águas (chuvas, rios, baía, rede pluvial, cuidado de suas florestas e montanhas, abastecimento de água, esgoto, lixo e seu tratamento adequado, entre tantos outros) e na definição e implementação de um plano urbano de uma cidade ecossocial, democrática e sustentável.

Rio, 24/04/2019

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