Rio de Janeiro, 3 de novembro de 2014
nordeste

Por Cândido Gzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase

A campanha eleitoral em dois turnos e este momento pós eleitoral revelam o quanto entre nós ainda está profundamente arraigada uma cultura autoritária, machista, racista, mandonista e até de fundamentalismos religiosos. Os preconceitos e as intolerâncias vieram à tona com força e estão escancarados. É particularmente preocupante o que apareceu compartilhado nas redes sociais.
Foi, sem dúvida, um processo eleitoral de movimentos drásticos, com altos e baixos, em meio a uma campanha agressiva de todos os lados. Isto no lado público mais visível, nos meios de comunicação. Ao mesmo tempo, independente do que se passava na mídia, instaurou-se um fecundo debate no seio da sociedade civil, como há tempo não se via igual. Como já escrevi, a verdadeira disputa democrática este ano aconteceu em casa, na rua, no bar ou restaurante, no trabalho, na associação ou clube, no movimento social. Deu-se um despertar da cidadania em busca do melhor rumo para o nosso futuro. Claro que isto se refletiu no processo eleitoral e no resultado oficial. Mas também esgarçou a sociedade, mostrando que temos uma frágil cultura democrática de respeito e aceitação de quem é diferente e/ou tem opinião e opção divergente da nossa. Pior, voltamos a revelar uma atitude negadora da própria cidadania a quem está no outro lado ou defende posições e ideias com as quais não concordamos.
É espantoso o quanto está presente o preconceito contra a cidadania de mulheres e homens que vivem no Nordeste. Como Dilma obteve mais de 70% dos votos válidos na Região Nordeste, picha-se a cidadania de nordestinas e nordestinos como de segunda categoria. Parece que elas e eles não tem o mesmo direito à emancipação social, ao direito civil e político de igualdade cidadã. Claro que uma parcela deles recebe “Bolsa Família” porque a sociedade exigiu isto do Estado, como direito aos famintos e miseráveis. Lembro aqui a Campanha Contra a Fome para dizer que é da cidadania ativa que surgiram as ideias e forças motivadores de um programa governamental como o Bolsa Família. Não é uma questão de paternidade do programa, mas de poder instituinte e constituinte, que só a cidadania tem. O programa Bolsa Família nada mais é do que um patamar mínimo para avançar ainda muito, muito mais, no incontornável desafio para a democracia de ir criando bases de emancipação social aos excluídos de tudo na sociedade brasileira. Mas, o preconceito vivo destampado agora e associado à Bolsa Família, é um ranço profundo que nasce lá na escravidão e que até hoje discrimina entre nós negras e negros, pobres de todos os matizes, e os condena à exclusão social, nega o direito à cidadania. Será que o direito de cidadania só caberia aos detentores de riquezas econômicas e culturais de uma sociedade profundamente desigual de berço? Nunca é demais lembrar e até gritar em alto e bom tom que a cidadania, como condição política de igualdade de todas e todos a ter o direito de ter direitos, está no centro da questão democrática exatamente por equalizar em termos de poder político os desiguais econômica e socialmente. Ao invés de demonizar a Bolsa Família, deveríamos saudá-la por levar milhões a maior emancipação e participação cidadã, livre dos coronéis de ontem.
A energia mobilizadora que levou Dilma a um segundo mandato foi exatamente uma aposta no aprofundamento das políticas sociais inclusivas. Mas isto de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Dilma obteve em termos absolutos o mesmo número de votos no Nordeste que no Sudeste, em torno de 20 milhões em cada região. Olhando bem, a cidadania da área metropolitana do Rio desenhou uma geografia do voto que espelha bem o que aconteceu em toda região Sudeste e mesmo no Nordeste: nas periferias das grandes cidades e do agronegócio o voto foi mais para a Dilma do que para o Aécio. Tais votos são de segunda categoria? Com base a que?
O inaceitável de um ponto de vista ético e cidadão é a segregação como revelada agora contra a brava gente nordestina e, extensivamente, aos mais pobres. Aliás, que seria do Sudeste sem a enorme migração nordestina na segunda metade do século passado? A prosperidade do Sudeste, de um ponto de vista analítico minimamente respeitável, se deve à escravidão e, depois, aos migrantes nordestinos. Precisamos combater com mais determinação os preconceitos de todo tipo. Esta é uma tarefa que exige ousadia e generosidade, pois é condição, em última análise, para que enfrentemos democraticamente este câncer que pode matar a nossa ainda jovem democracia. Os sinais da intolerância que levam ao fundamentalismo asfixiante e a regimes autoritários apareceram abertamente neste conjuntura eleitoral.
Não foi só o velho preconceito de origem racista e dos donos de gado e gente que está cravado na nossa certidão de nascimento, desqualificando tudo o que o ameaça. No processo eleitoral vimos o quanto é estruturante e excludente entre nós a questão dos direitos sociais e reprodutivos. É um tabu de raízes mais profundas do que se pensa, dado o machismo e o sectarismo religioso. Apesar de toda a urbanização e dos aparentes ares cosmopolitas de nossas metrópoles, somos profundamente retrógrados, reacionários e machistas diante dos direitos sexuais e reprodutivos, que envolvem mulheres e todos que optam por liberdade de seus corpos e de sua sexualidade. Junto com o racismo, esta é a nossa grande questão em termos daquele fundamento básico, a garantida de liberdade e igualdade cidadã, consubstanciada nos direitos civis e políticos.
Na campanha oficial o tema da descriminalização do aborto, do combate à homofobia e do direito à individualidade nas escolhas sexuais e reprodutivas foi tacitamente eliminado, como se não existisse e como não fosse uma questão quente a ser enfrentada. Bem, no seio da sociedade civil a questão está bem plantada, o que é um enorme ganho. Mas como abrir espaço na institucionalidade política e na legalidade negadoras de direitos fundamentais? Aqui a intolerância, particularmente de certas religiões, acaba subordinando o bem público dos direitos de cidadania a interesses particulares de Igrejas. Precisamos repor no centro a questão republicana, da igualdade e da não discriminação. Só pode existir liberdade religiosa – um direito civil e político – se as diferentes religiões aceitarem, sem discriminações e intolerâncias, o direito de liberdade de cada uma e um a professar a religião que lhe convêm, a ter a sua individualidade fortalecida e a exercer o livre arbítrio sobre seus próprios corpos.
Enfim, sou dos que pensam que, no Brasil, estamos entrando, como povo cidadão em construção, num momento perigoso de enormes contradições entre radicalizar a democracia ou se contentar com democracia de baixa intensidade. Não é a disputa democrática que devemos temer, mesmo não ganhando. Pelo contrário, é o engessamento da disputa e o não combate aos preconceitos e intolerâncias presentes lá no fundo de nosso ser brasileiro, na nossa cultura, e o não enfrentamento da desigualdade social estrutural onde reside o perigo. Vencer ou perder eleições é parte da mesma relação na democracia, onde quem ganha tem vitória relativa e quem perde tem derrota relativa. Com nossas disputas formamos uma situação altamente instável de correlação de forças, um pacto de incertezas, mas que torna o método democrático produtivo, pois sempre sob tenção e sob necessidade de negociar acordos, criando novas situação a exigir novos acordos, e assim por diante. Mas precisamos por abertamente na mesa os nossos grandes tabus que entravam os avanços civis e políticos, condição para outras grandes conquistas. Basta de preconceito e intolerâncias, seja com quem for! A nossa força está na nossa imensa diversidade.
Rio, 30/10/2014
Foto: site Varela Notícias

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