Rio de Janeiro, 6 de março de 2015
Por Leticia Alves*
Assistente de pesquisa do Ibase
Já faz alguns meses que cheguei ao México e venho me dedicando a uma pauta específica do movimento feminista, uma pauta importante na vida das mulheres: o aborto. Assim como são várias as maneiras através das quais as mulheres chegam ao feminismo, começar a trabalhar com o aborto pode se dar por meio de muitos caminhos. Pode ser por uma experiência própria na qual você se viu na situação de realizar um, ou porque teve que apoiar a uma mulher próxima: amiga, irmã ou prima. Tantas e tão complexas de entender são as formas que te fazem mover e atuar como sujeita política e social, como sujeita construtora de conhecimento e de indagação ao seu entorno. Mas que me parecem tão importantes e interessantes de explorar quando fazemos o percurso de perguntar-nos o porquê de fazemos e de sermos como tal.
Para mim, me formar no tema de aborto começou como uma oportunidade que eu via em aprender as conquistas das mulheres no México e de poder levar comigo algo para nossas construções e lutas no Brasil. Contudo, pouco a pouco me fui dando conta que minha decisão envolvia um compromisso político com as mulheres e comigo mesma. Sobretudo, o compromisso de lutar pela igualdade de condições para e entre as mulheres. O contexto mexicano de acesso ao aborto legal me ajudou particularmente a tomar consciência disso.
México x Brasil
As circunstâncias para abortar no México e no Brasil são diferentes e parecidas ao mesmo tempo. No México, especificamente na Cidade do México, o aborto é legal, o que implica que ele seja fornecido como serviço público em pelo menos quatro clínicas especializadas em saúde da mulher e em cerca de outros dez hospitais da capital (1). Já nos demais estados do país, o aborto é crime, ainda que sejam previstas algumas situações que não o criminalizam (2), por exemplo, nos casos de estupro, perigo de morte e/ou grave dano à saúde da mulher. Não obstante, o acesso nesses casos é muito difícil ou quase nenhum para que as mulheres consigam abortar dentro de condições dignas.
No Brasil, o aborto é crime, mas também contamos com exceções como estupro, perigo de morte para a mulher, feto anencefálico ou graves complicações na formação do mesmo. Como no México, esses casos são acessados raríssimas vezes por falta de difusão dos serviços e informação direcionada às mulheres sobre seus direitos, escassez de serviços e agentes públicos que não correspondem a um Estado laico, e que representam as forças fundamentalistas que integram o Estado brasileiro.
Tudo isso me remete a um enorme desnivelamento de oportunidades entre as mulheres. Se no Brasil, uma minoria de mulheres “se vira” com opções de serviços caros e muito bem dissimulados, a outra grande parte de mulheres morre, se põe em condições de risco físico, psicológico e econômico — dá o pouco dinheiro que tem ou se endivida para pagar serviços terrivelmente inseguros.
O acesso ao aborto legal no México
No México, a trajetória de uma mulher que pode ter a sorte de conseguir abortar começa se ela vive na capital. Caso contrário, tem que dispor dos meios para viajar até a Cidade do México. As dificuldades se agravam no caso das menores de idade, que necessitam do consentimento de suas tutoras ou tutores, invalidando duplamente sua capacidade para decidir sobre sua vida.
Há instituições que podem apoiar as mulheres para que elas cheguem à capital. Porém, mais uma vez, ela tem que contar com a sorte de aproximar-se de uma dessas instituições: através da internet, de uma amiga, um irmão, uma doutora ou outra instituição local que lhe conte sobre essas organizações. Se tudo corre bem, passa ao desafio seguinte de administrar a permissão no trabalho, alguém que cuide de seus filhos e filhas, caso os tenha, e que a sua viagem à Cidade do México passe da maneira mais despercebida possível frente a seu companheiro, familiares, pessoas conhecidas, vizinhos e vizinhas, chefas e chefes, e colegas de trabalho.
Se no Brasil, em geral, a disparidade das opções entre as mulheres se mostra no lema: “As ricas pagam e as pobres morrem”. No México, as chances das mulheres de diferentes classes sócio econômicas, idades, etnias/culturas e regiões do país também correspondem a uma grande desigualdade entre as mulheres. A conjuntura brasileira e mexicana para que possamos abortar nos aponta como que a proibição, a criminalização e todos os demais obstáculos para um aborto livre, seguro e sobre as condições que elegemos cada uma de nós segundo nossas necessidades, na verdade, produz somente injustiça social e oportunidades muito discrepantes para as mulheres.
O sistema de Interrupção Legal da Gravidez (ILE) implantado na Cidade do México contém conquistas importantíssimas. Por exemplo, em seu acesso não há exigência de processos anteriores nos quais as mulheres tenham que discutir, justificar ou “refletir” sobre sua escolha frente a médicas e médicos ou trabalhadoras sociais. Tampouco precisam, necessariamente, aguardar pelo procedimento com o fim de que esse período de espera intervenha na sua decisão. Todas as mulheres, residentes ou não na Cidade do México, podem acudir a um procedimento de aborto nas clínicas públicas, ao contrário do Uruguai, único país na América do Sul onde existe despenalização. No Uruguai, no entanto, as mulheres precisam cumprir com todos estes requisitos para poder seguir em frente com um aborto.
No entanto, o aborto como uma questão que reflete a construção e o reconhecimento das mulheres como sujeitas sociais e políticas autônomas, recai sobre as políticas públicas de aborto. Ainda que com avanços, as clínicas públicas na Cidade do México não oferecem a anestesia geral como uma opção às mulheres que assim gostariam que fosse o seu procedimento. Essas têm que procurar esse tipo de atenção em clínicas privadas que cobram em torno de dois mil pesos (equivalente a cerca de quinhentos reais). Não se permite tampouco o aborto que ultrapasse as 12 semanas de gravidez. A exceção é quando a gravidez é resultado de estupro, quando se admite formalmente o aborto com mais semanas.
Por que em casos de estupro é permitido, enquanto que os demais casos derivados da vontade da mulher não? Por que as anestesias gerais estão disponíveis somente em clínicas privadas? Acredito que, pontos como esses, servem para desmitificar as informações que temos. Muitas vezes, estas estão baseadas em profissionais de diversas áreas, muitas e muitos participando do movimento antiaborto e que manuseiam de maneira antiética os dados sobre os procedimentos abortivos.
Por outro lado, o estigma do aborto faz com que profissionais busquem se esquivar do tema. De qualquer modo, um procedimento médico ou cirúrgico deveria sempre partir da tomada de decisão da pessoa que é paciente, e não da sociedade e a categoria médica, como em muitos casos assim o fazem. Mas, por que não no caso do aborto, um procedimento que dura aproximadamente quinze minutos, e se relaciona com a vontade e o projeto de vida que cada mulher pode criar para si?
Ameaças às políticas de aborto legal
Tanto a anestesia geral quanto os procedimentos com mais de 12 semanas requerem despesas mais altas ao orçamento público. Porém, a autonomia e decisão das mulheres não tem valor para o Estado e por isso, sua atitude é a de não gastar mais nessa área da saúde. Trata-se de uma questão estrutural no mundo se pensamos que o corte nos gastos públicos de países hegemônicos como os Estados Unidos e na Europa também se inicia pelos direitos reprodutivos. Ameaçam as políticas de aborto que o garantem em pé de igualdade com os demais serviços públicos e de saúde.
Ao mesmo tempo em que a restrição ao aborto é uma questão parte do sistema patriarcal do qual participa o Estado, não significa que as mulheres em suas articulações não trabalhem de diversas maneiras subversivas em diálogo com as sociedades das quais fazem parte. No México, sinto que todo o movimento de legalização e construção de políticas públicas — que tem como principais sujeitas os movimentos feministas, de juventudes e de direitos sexuais e reprodutivos — desenvolve, desde o próprio movimento, a superação de discursos moralistas sobre o aborto com uma sensível influência sobre a subjetividade das mulheres que experimentam o aborto, em geral.
As iniciativas da sociedade civil organizada se manifestam de diferentes formas. Eu mesma participei de um espaço de formação sobre as temáticas de aborto junto a um grupo de mulheres, a grande maioria sendo jovens, com exposições interdisciplinares (medicina, sociologia, psicologia) desde uma perspectiva geracional, contemplando a mulheres vivendo com HIV/Aids. Desde então, pude perceber também a aliança entre o movimento, organizações e profissionais da saúde que nos permite acessar informações éticas e nos apropriar mais do discurso e do conhecimento científico.
Se por um lado penso que no México a legalização na capital é propícia a um contexto de políticas progressistas do aborto, por outro acho que não existe uma linearidade. Será que no Brasil não nos falta apostar em outras frentes de iniciativa, como linhas telefônicas de informação segura, manuais de aborto ou algo que me parece extremamente estratégico: investir mais na formação do próprio movimento feminista através do acesso à informação médica e a uma perspectiva comparada aos demais países, especialmente da América Latina?
Não quero dizer que temos que esgotar nossas energias nessas atividades, mas que são avanços em políticas autônomas do movimento que podem colaborar para que as mulheres tenham algum apoio em seu aborto, tendo acesso a um mínimo de informação e tendo meios aos quais recorrerem quando estiverem correndo risco. Hoje, no Brasil, contamos somente com informação via internet e sabemos quais são as condições de classe, de idade/geração, racialização e geográficas que a maioria de mulheres com acesso a tal ferramenta desfrutam.
Entendo também que a intolerância da sociedade, porém, sobretudo do estado e de grupos políticos religiosos, nos põe em situações de perigo às que assumem qualquer tipo de difusão de informação sobre o aborto. Na minha opinião, temos que tomar esse desafio, dentro de nossas possibilidades, desenvolvendo medidas de segurança, pois ele é parte importante da luta pelos direitos reprodutivos e por nossas corpos.
O presente texto faz parte de um diálogo entre a minha experiência como feminista a partir de uma socialização e apropriação do tema de aborto no Brasil e no México. Logo, penso que as diferentes tramas do aborto nessas duas sociedades possibilitam caminhos diferenciados nas nossas formas de conceber o aborto objetiva e subjetivamente. Devemos situar o aborto enquanto luta regional na América Latina (obviamente baseado em nossos contextos nacionais) e recordar a importância de estar em contato com as diferentes realidades sobre o aborto.
SE CUIDA, SE CUIDA! Se cuida, seu machista, que a América Latina vai ser toda abortista!
E tremem, e tremem… E tremem os machistas, que a América Latina vai ser toda abortista! Siiim, abortista!
Referências
(1) Para mais informações consultar a página de Andar (Alianza Nacional por el Derecho a Decidir).
(2) São situações em que, excepcionalmente, o aborto não é considerado crime. Cada país tem exceções diferentes estabelecidas. No caso do México, as exceções variam segundo cada estado da República. Há países, por exemplo, como o Chile, que não preveem nenhuma situação onde a mulher pode abortar legalmente.
* Sou Leticia, colaboradora desde fevereiro nas pesquisas e ações de juventudes do Ibase e do projeto Cidade, Mudanças Climáticas e Ação Jovem. A partir da experiência em movimentos sociais e organizações da sociedade civil, venho concentrando minha atuação nesses espaços a partir da perspectiva geracional atravessada pelo gênero, raça/etnia, sexualidade e demais identidades que podem ser sentidas pelas juventudes. Desde janeiro de 2014, construo, com algumas amigas, o Coletivo Feminista Luiza Mahin. Além do movimento feminista, o Coletivo vem integrando o movimento de juventudes através do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro. Durante o ano passado, colaborei no Fundo de Aborto e Justiça Social atendendo a linha telefônica de informações a mulheres em processo de aborto, na Cidade do México. Foi quando pude aprender muito a partir do contexto de aborto legal na capital mexicana e as iniciativas da sociedade civil organizada, sobretudo feministas, de juventudes e promotoras dos direitos sexuais e reprodutivos, para acompanhar e incidir sobre o processo que ainda deve ser ampliado e aprofundado em todo México. Também participo como assessora pela América Latina da Frida – Fundo de Jovens Feministas, que apoia o movimento internacionalmente e concebe uma forma mais participativa do processo de financiamento. Ao longo da minha trajetória, venho percebendo como o trabalho das mulheres jovens entorno dos direitos sexuais e reprodutivos, da legalização do aborto e descriminalização das mulheres vem sendo muito importante para avançar na construção de políticas para a implementação de tais direitos na vida das mulheres, em vários países da região.