Pedro Martins, jornalista do Ibase
Extraído da Revista Trincheiras #5
União dos povos, legado para a cidade e prática de esporte – esses são alguns elementos que nos vêm à cabeça quando pensamos em Olimpíadas. Entretanto a realidade da preparação da cidade do Rio de Janeiro para a recepção dos Jogos de 2016 remete a um conceito oposto aos valores expostos no início do texto: a exclusão. Ao longo do processo de obras que reconfigurou muitos pontos da cidade, o que se viu foram violações de direitos e o desenvolvimento de um projeto voltado para atender os interesses do capital. Tudo isso gerou um grande número de excluídos – excluídos do direito à moradia, do direito à cidade, e até mesmo da prática do esporte –, algo bem diferente das peças publicitárias que compunham a campanha da cidade para sediar mais um megaevento. E, para garantir a implementação do projeto, não poderia faltar o reforço da militarização nas favelas, um elemento que ajudou a garantir a exclusão de forma “pacífica” e destinou a esses territórios um controle excessivo dos corpos e violência cotidiana.
No total, foram mais de 22 mil moradias removidas sem um amplo debate com a sociedade e com as populações afetadas; cerca de R$ 24 bilhões de reais gastos para as obras das Olimpíadas, deixando setores como educação e saúde precarizados, além de atrasar salários de servidores públicos; e fechamento de aparelhos esportivos utilizados para treinamento de atletas. Esses foram alguns dos ingredientes para a implementação do projeto olímpico no Rio de Janeiro. As consequências dessa política materializaram-se no decreto de calamidade pública do estado do Rio de Janeiro por conta da crise financeira. Contudo, após a União anunciar a liberação de R$ 2,9 bilhões para o estado, o governador em exercício Francisco Dornelles (PP) foi claro: “Esse aporte não é para o Rio, é para a Olimpíada”. A declaração foi dada em 20 de junho, quando o governo estadual ainda não havia pagado integralmente os salários de servidores públicos, de aposentados e de pensionistas. Somente a metade dos rendimentos havia sido depositada, seis dias antes.
Diante dessa realidade, é possível fazermos uma espécie de tour por alguns elementos que compõem os direitos negados em troca de um modelo de cidade voltado para os grandes negócios. Além disso, também vale visitar as atividades que são realizadas para criticar esse projeto, lembrando que não se trata de um projeto que vai muito além desse evento específico. Trata-se de um projeto de cidade em que a cidadania ativa, ou seja, a participação da população na definição dos rumos da cidade, é negligenciada para que os negócios do capital possam fluir. Enquanto os Jogos Olímpicos durarão 16 dias, os Jogos da Exclusão passam a nítida impressão de que permanecerão por muito tempo na cidade do Rio de Janeiro.
Remoções e a relocalização dos pobres da cidade
É impossível falar em obras para Copa do Mundo e Olimpíadas sem abordar as remoções na cidade do Rio de Janeiro. Os argumentos do poder público para remover foram baseados em quatro pontos específicos: implementação de obras viárias e corredores de transporte, como a Transolímpica e a Transcarioca; instalação de equipamentos esportivos, como as obras do Parque Olímpico; obras de reconfiguração urbana da zona portuária e áreas ditas de risco ou interesse ambiental.
Mais de 22 mil moradias
foram removidas
sem um amplo debate
com a sociedade e
com as populações afetadas.
Segundo o Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, o percurso desse trajeto, que passa por regiões como Madureira, Jacarepaguá, Recreio, Centro, Curicica, entre outras áreas da cidade, tirou 22.059 famílias de suas casas. Dentre as comunidades atingidas, algumas foram vítimas de violência constante e também exemplo de resistência. Um caso a ser destacado é o da Vila Autódromo, localizada ao lado do Autódromo de Jacarepaguá, área que foi destinada à construção do Parque Olímpico. Sob essa justificativa, as ameaças de despejo e o controle sobre os moradores do local foram constantes.
Natália Silva mora na Vila Autódromo há mais de vinte anos e já passou por outros processos de tentativa de desocupação da comunidade por parte do poder público. Ela avalia que a remoção da comunidade sempre teve como grande objetivo atender os interesses do mercado imobiliário, chegando inclusive a mudar as configurações dos bairros: “A Olimpíada foi pretexto para remover a comunidade por conta do interesse da especulação imobiliária. Aqui sempre foi Jacarepaguá e, de repente, com a valorização do local, virou Barra da Tijuca. Sempre falamos Autódromo de Jacarepaguá”.
Além de atender os interesses do mercado imobiliário, Natália avalia que também se trata de uma política “higienista”, pela qual se retiram os pobres do local visando sua consequente valorização. Confirmando o ponto de vista de Natália, o empresário Carlos Carvalho, considerado um dos “donos” da Barra da Tijuca, declarou abertamente em entrevista ao site da BBC: “Como é que você vai botar o pobre ali? Ele tem que morar perto porque presta serviço e ganha dinheiro com quem pode, mas você só deve botar ali quem pode, senão você estraga tudo, joga o dinheiro fora”. Carvalho é dono do terreno onde está sendo construída a Vila dos Atletas e sua empresa, a Carvalho Hosken, é uma das integrantes do consórcio que constrói o Parque Olímpico.
Apesar de toda a situação adversa, a resistência dos moradores da Vila Autódromo trouxe resultados. Diante das tentativas anteriores de remoção e das intervenções violentas da Guarda Municipal para a retirada de moradores e demolição de imóveis, os moradores elaboraram o Plano popular da Vila Autódromo, com o auxílio de arquitetos e urbanistas da UFF e da UFRJ. Natália Silva explicou que o projeto inicial previa a permanência das seiscentas famílias que moravam no local, mas não foi aceito pela Prefeitura.
“A comunidade não é contra esportes ou Olimpíadas,
mas contra utilizar o evento para fazer
higienização social da cidade,
feito com a dor e sofrimento de muita gente.”
Natália Silva
A batalha se estendeu, e o prefeito Eduardo Paes chegou a dizer que o “miolo” da comunidade seria preservado, mas, com o avanço das demolições e a desistência de muitos moradores de tentar permanecer no local por conta das pressões sofridas, o plano que está sendo implementado na Vila Autódromo prevê a construção de vinte casas no local. Mesmo com um número abaixo do desejado, a construção das casas é vista como uma conquista: “Vejo como vitória por ficarmos aqui de fato, mesmo não sendo nas nossas casas, como queríamos, mas em casas que estão sendo construídas. Meu desejo era permanecer nesta casa, mas não deixa de ser uma vitória, por ser o local de que a gente gosta e onde quer ficar”. A moradora da Vila Autódromo ainda faz questão de frisar que não se trata de ser contra as Olimpíadas: “A comunidade não é contra esportes ou Olimpíadas, mas sim contra usar esse evento para fazer higienização social da cidade. É um evento feito com a dor e o sofrimento de muita gente. E isso não é passado para o mundo, a grande mídia não aborda isso”, lamenta Natália Silva.
Paradoxo: evento esportivo que exclui atletas
A política de remoções para a realização dos jogos não afetou somente as pessoas que moravam em locais interessantes ao capital imobiliário. Por incrível que pareça, também sofreram com o despejo atletas do principal local de treinamento para atletismo no Rio de Janeiro, o Estádio Célio de Barros. Fechado desde janeiro de 2013, o local era o único espaço na cidade com instalações de treinamento para todos os esportes das competições de atletismo. Além dos atletas que ali treinavam, também foram prejudicados diversos jovens e crianças que também utilizavam o espaço. A falta de equipamentos esportivos públicos é uma realidade em todo o estado, que segue o modelo privatista de outros setores.
Ainda sem definição sobre o que será feito no futuro com a pista de atletismo que foi desmantelada, o Célio de Barros abrigará as instalações de broadcasting para as emissoras que farão a cobertura dos Jogos. Nesse período, os atletas do Rio de Janeiro tiveram que recorrer a espaços sem estrutura ideal, além de algumas pistas militares da cidade, como a do Campo dos Afonsos. A coordenadora técnica de atletismo e presidente da Associação de Atletas do Célio de Barros Solange do Valle afirma que as perdas com o fechamento do estádio vão muito além dos resultados esportivos de atletas. Para ela, há uma grande perda social, uma vez que o espaço era uma referência para diversos jovens, que, mesmo que não seguissem carreira de atleta, acabavam descobrindo outras aptidões e tornando-se fisioterapeutas, nutricionistas, professores de educação física etc., mantendo uma ligação profissional com o esporte descoberta naquele espaço. Ao ver seu local de trabalho fechado, sem nenhuma consulta aos que nele treinavam, Solange fala algo que parece contraditório para quem trabalha com esporte: “Estamos sendo punidos por sediarmos as Olimpíadas”.
A coordenadora técnica se declara espantada, pois a situação parecia temporária, mas se encontra ainda sem nenhuma definição. Ela também lamenta a falta de planejamento para o esporte e o fato de nenhum dos governos ter pensado numa alternativa para substituir o espaço do Célio de Barros, mesmo que os custos de uma pista de atletismo sejam relativamente baixos. Para se ter ideia, pesquisando no Portal da Transparência, é possível verificar que o gasto máximo com a construção de uma pista de atletismo é de R$ 10 milhões. Enquanto isso, a ciclovia que foi derrubada pelas ondas da ressaca do mar em São Conrado custou cerca de R$ 44 milhões. Ou seja, com o montante gasto na obra mal projetada, que acabou destruída e causando duas mortes, poderiam ser construídas, com folga, quatro pistas de atletismo.
Wellington Simas, técnico de atletismo, revela que a rotina de treinamento cada dia em um lugar diferente também compromete o rendimento dos atletas. Ele ressalta a importância desses elementos extrapista para seu desenvolvimento: “Nós sofremos, por exemplo, com o transporte para os diversos lugares de treino. A gente espera o ônibus de outras modalidades chegar para poder sair. Com o tempo perdido em deslocamento, a parte laboral do treinamento é prejudicada”.
Solange e Wellington defendem que o esporte deveria ser incentivado rotineiramente nos espaços públicos, como, por exemplo, as escolas. Esse contato estimularia o desenvolvimento de jovens atletas, que, quando fossem treinar, já chegariam com uma noção maior do próprio corpo. A realidade da rede pública de ensino, entretanto, é extremamente precária – professores em greve e escolas ocupadas por estudantes, em protesto contra a falta de condições imposta por políticas que não privilegiam o setor.
Toda essa realidade de exclusão e baixos investimentos acarreta muitas vezes o abandono do esporte, por não só desestimular como também dificultar a conquista dos resultados esportivos. Com isso, mesmo para aqueles que praticam esporte, até para quem vive do esporte, a pergunta que fica é a que Solange do Valle faz a todo momento: “Que legado é esse que tudo vai sendo negado?”.
Calamidade: falta de salários e militarização
E quem achava que, com a proximidade dos Jogos, para exibir uma imagem positiva, a realidade seria diferente, se enganou. No dia 17 de junho o governador em exercício do Rio de Janeiro Francisco Dornelles (PP) decretou estado de calamidade pública devido à grave crise financeira enfrentada pelo estado. A situação atual é composta por atrasos constantes dos salários de servidores públicos, inclusive o parcelamento em duas partes do salário referente ao mês de maio. Além dos salários atrasados, as condições da rede estadual de saúde e de educação são precárias, por falta de investimentos. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) chegou a cortar os pagamentos da empresa que realizava a faxina, ficando com pontos insalubres por falta de limpeza.
Todo o caos instalado tem raízes em políticas de longa data. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, entre os anos de 2008 e 2013 o Rio de Janeiro deixou de arrecadar R$ 138 bilhões em ICMS por ter concedido isenções fiscais a empresas que se instalaram no estado. Para entender melhor a situação, o valor é mais do que o dobro do valor que será arrecadado em 2016 e, segundo cálculos, daria para pagar os salários do funcionalismo público por aproximadamente cinco anos. Mesmo com todos esses problemas, o decreto de calamidade pública fez com que a União liberasse R$ 2,9 bilhões de reais para o Rio de Janeiro, que, segundo Dornelles, serão direcionados exclusivamente para as obras das Olimpíadas.
Entre 2008 e 2013, o Rio
deixou de arrecadar R$ 138 bilhões
em isenções fiscais para que empresas
se instalassem no estado.
Daria para pagar o salário do funcionalismo
por 5 anos.
Até o momento, a alternativa apresentada pelo governo para sair da crise é seguir a proposta do presidente interino Michel Temer e congelar os salários do funcionalismo. Para isso, foi enviado um projeto de lei (PL 257) à Assembleia Legislativa, prevendo o congelamento até 2018. Aline Dias é professora da rede estadual de educação, que se encontra em greve, e falou sobre as consequências que tal medida pode trazer caso seja aprovada: “Quando o Dornelles diz que esse dinheiro é para as Olimpíadas, deixa muito claro quais são as prioridades do estado. Estamos falando da precarização de todos os serviços públicos. Os professores não têm reajuste desde 2014. Se a PL 257 for aprovada, receberemos em 2018 o mesmo salário que recebemos em 2014; ou seja, é o fim da estabilidade”.
Além dos servidores, as favelas e periferias da cidade também estão bem distantes de qualquer legado olímpico positivo. A realidade é que, em vez de investimentos em infraestrutura e melhoria das condições de vida dessas populações, o que se vê é o aumento da repressão e o controle militar desses territórios. A lógica de que os pobres são os inimigos da cidade permanece, se aprofunda e traz mais violações de direitos, como relata Fransérgio Goulart, do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro: “As consequências que estamos vivendo com a aproximação dos jogos é de megaoperações diárias, em que a Polícia Civil (Core) tem sido a principal violadora de direitos e também a arma desse genocídio nas favelas. As invasões arbitrárias de nossas casas são mediadas por mandados coletivos de busca, expedidos por outro instrumento racista do Estado, o Judiciário”. Com relação ao genocídio citado por Fransérgio, os números alarmantes de assassinatos de jovens negros pela polícia incentivaram, inclusive, uma campanha da Anistia Internacional. A campanha denuncia que, dos 56 mil homicídios cometidos no Brasil em 2015, 30 mil foram de jovens entre 15 e 29 anos e, desses, 77% eram negros.
Com toda a violência envolvida para garantir que os pobres e favelados não participem da festa olímpica, Fransérgio ainda é capaz de ver um ponto positivo no fato de a cidade sediar os Jogos de 2016: “Um aspecto positivo nesse cenário é que estamos conseguindo estabelecer um diálogo com a mídia internacional para dizer que essas Olimpíadas estão sendo realizadas a partir do sangue do povo negro, pobre e favelado”. Essa atenção internacional possibilitou que movimentos e defensores de favelas conseguissem construir uma rede mútua de apoio e proteção, com destaque para o Fórum de Juventudes e a Rede de Comunidades contra a Violência.
Um aspecto positivo nesse cenário é que
estamos conseguindo estabelecer um diálogo com a mídia internacional
para dizer que essas Olimpíadas estão sendo realizadas
a partir do sangue do povo negro, pobre e favelado.
Movimentos preparam atos denunciando a exclusão e o ataque à democracia no país
A fim de dialogar sobre todo esse legado das Olimpíadas, movimentos sociais e organizações da sociedade civil estão preparando uma série de manifestações de denúncia das violações de direitos. Essa série de eventos, chamada “Rio 2016: Jogos da Exclusão”, prevê atos entre 1º e 5 de agosto, iniciando com a “Vigília da Dignidade” e encerrando com um grande ato no dia da abertura dos Jogos.
Diretor executivo da ONG Koinonia e um dos organizadores da “Vigília da Dignidade”, Rafael Soares de Oliveira relata que, além das violações já conhecidas, a Vigília ganhou um elemento novo com a ruptura institucional instaurada pelo processo de impeachment. Segundo Rafael, os trâmites impostos no afastamento da presidenta Dilma Rousseff têm como motivação a implementação de projetos conservadores: “Dignidade e democracia se colocam como urgentes neste momento, em que presenciamos o avanço de um campo conservador e truculento que está se sentindo à vontade com o golpe institucional”.
Com essa ruptura institucional, Rafael avalia que as violações de direitos tendem a crescer ainda mais, pois o que está em jogo são interesses políticos que não preveem a participação cidadã para decidir os rumos políticos do país: “Trata-se de um arranjo com interesses de cúpula do empresariado, sem a participação da população em seus territórios. Dá para comparar com o que aconteceu nos megaprojetos da Amazônia – um projeto político frágil cuja participação popular não era institucionalizada. Nos governos puro-sangue do PMDB abriu-se ainda mais espaço para que isso ocorresse de forma legitimada”.
Como disse a treinadora Solange do Valle, o legado dos Jogos Olímpicos vai deixando sua marca com aquilo que é “negado” à maioria da população. Sob o pretexto da organização do megaevento que durará apenas 16 dias, foi possível reorganizar a cidade e afastar tudo e todos que podem representar qualquer empecilho à fluidez dos negócios, seja do mercado imobiliário ou de qualquer outra área, como o turismo e até mesmo o esporte. E, caso haja algum empecilho, a política de segurança se apresenta com reforço militar cada vez mais forte, para garantir a tranquilidade do capital. Os Jogos da Exclusão estão aí e parece que o plano é que durem para além do mês de agosto de 2016.