por Tauan Satyro, pesquisador do Ibase
A Lei nº 11.635/2007, instituiu o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi escolhida como uma maneira de trazer a memória o dia da morte Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, líder e fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de Candomblé na Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã, em Salvador (BA).
Mãe Gilda foi alvo de perseguição por parte da Igreja Universal do Reino de Deus, tendo em outubro de 1999 a sua imagem divulgada na capa do jornal “Folha da Universal”, pertencente a igreja, na qual uma foto foi publicada junto de uma tarja com os seguintes dizeres: “macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes”. A partir desse momento, Mãe Gilda, seu terreiro e sua família, passaram a ser alvos de diversas formas de violência, o que levou a Ialorixá a sofrer um infarto e vir a óbito em 21 de janeiro de 2000.
Mais de duas décadas anos após a morte de Mãe Gilda, ainda estamos distantes de ter o direito à liberdade de crenças garantido de forma efetiva. Sendo alarmantes os dados sobre intolerância religiosa no Brasil, com 1478 denúncias registradas apenas no ano de 2023 por meio do Disque 100, canal do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Número esse que representa um crescimento de 64,5% em relação ao ano de 2022, quando foram registradas 898 denúncias através do canal. Cabendo ressaltar que ao longo dos anos o principal alvo dos ataques tem sido as religiões de matrizes africanas, como o candomblé e a umbanda.
Nesse contexto, o Rio de Janeiro tem sido ao longo dos anos um dos protagonistas no que diz respeito a origem das denúncias, totalizando 280 em 2023 (18,9%), ficando atrás apenas do estado de São Paulo, onde ocorreram 365 denúncias (24,7%) e a frente do estado da Bahia, com 169 denúncias registradas (11,4%).
Os dados são alarmantes e ajudam a evidenciar algo que o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) vem identificado por meio de suas pesquisas. Na Pesquisa realizada pelo projeto Cidadania Ativa e Acesso à Justiça, os dados do Indicador de percepção sobre a existência de discriminação, revelam que em Jardim Gramacho, bairro do município de Duque de Caxias (RJ), 40,4% da população com idade acima dos 15 anos, já sofreu ou conhece alguém que tenha sofrido algum tipo de violência ou discriminação por causa da religião.
O mesmo indicador construído a partir da pesquisa realizada em um conjunto de favelas da Tijuca (Borel, Casa Branca, Indiana e Chácara do Céu), bairro da Zona Norte do Município do Rio de Janeiro, revela que no Morro do Borel 55,5% da população com idade acima dos 15 anos, já sofreu ou conhece alguém que tenha sofrido algum tipo de violência ou discriminação por causa da religião. Já no Morro da Casa Branca esse percentual é de 40,5%; na Indiana 39,7% e na Chácara do Céu, 33,4%.
Em outro território, o Complexo do Alemão, também localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, o percentual de moradoras(es) com idade acima de 15 anos que reconhecem que já sofreram ou conhecem alguém que tenha sido vítima de alguma violência ou discriminação em decorrência da religião chegou a 45% segundo a pesquisa.
Verifica-se que em todos os territórios o percentual de respostas positivas que apontam a existência desse tipo de violência é bastante elevado, o que mostra um cenário de violação constante a um direito cuja Constituição Federal, em seu artigo 5º, dispõe como um direito inviolável, parte dos direitos fundamentais a promoção da dignidade da pessoa humana.
Assim, tanto os dados do Disque 100 apresentados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, quanto os dados apresentados pelo Ibase, apontam para um grande desafio no campo das políticas públicas em direitos humanos na medida em que comprovam que a liberdade de crenças está longe de ser um direito efetivamente garantido.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 75 anos em 2023, mas a ideia de que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, sendo livre para mudar de religião ou de convicção, assim como manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos, conforme consta em seu artigo 18º, está longe de ser uma realidade e a intolerância religiosa cada vez mais se apresenta como um problema social complexo e distante de ser solucionado, devendo ser uma questão a ser tratada como prioridade por aquelas(es) que se dizem comprometidas(os) com a democracia e contrárias(os) a toda e qualquer forma de opressão.