Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
Em cem dias de Governo Bolsonaro, nem dá para fazer um balanço das iniciativas e dos possíveis impactos, porque não existem. A característica predominante é das falas desconcertantes, desconexas e espantosas por parte do Presidente, sua família de políticos números 1, 2 e 3 e do núcleo de ministros mais alinhados com a estreita visão de valores e costumes. Será isso a nova política? É isso que o Brasil precisa para se reerguer como povo e nação num mundo de incontornáveis interdependências ecológicas, políticas, econômicas e culturais? E o que significa a ocupação de postos estratégicos do governo por militares de alta patente? Como tentar entender o sentido do ultraliberalismo de Guedes no contexto de um discurso nacionalista velho combinado com a subserviência ao poder imperialista americano?
A vida segue com todos os desafios de tentar viver dignamente num contexto onde predomina o laissez faire, do mais selvagem livre mercado. Não estamos diante de regras políticas, mas sofremos por total falta delas, pois cada um faz o que pode e consegue. Sim, temos um Judiciário muito ativo no seu seletivo e obsessivo combate à corrupção, beirando a criminalidade legalizada contra certos setores da elite política. Isto se combina com a ativa ação policial autorizada a matar nas áreas populares em nome da segurança nas cidades segregadoras de pobres para o brilho da opulência dos ricos. Milhões de desempregados, milhões de subocupados, milhões de desalentados, milhões que se viram com bicos aqui e ali, milhões que vivem, literalmente, nas ruas, sem eira nem beira. Nada, absolutamente nada, aponta algo que pode ser uma luz no horizonte.
Mas o mais grave é o que funciona, enquanto isso. Os bancos nunca estiveram tão bem. Alguém ouviu ou leu alguma proposta do governo, do banqueiro Guedes (o considero parte deste segmento extremamente rico da classe dominante), dos Parlamentares ou do Poder Judiciário no sentido de regular minimamente o capital financeiro? Estamos diante de um grupo de famílias que beira ao insignificante em termos estatísticos, mas que controlam o poder, a política e economia no Brasil. Se temos déficit orçamentário é essencialmente devido aos juros estratosféricos que pagamos aos “proprietários” da dívida pública, cujo juro é determinado pelo tal Comitê do Banco Central, formado por representantes de banqueiros. É o jogo do bicho legalizado!
Um problema estrutural, ao menos nas grandes cidades, é o declínio estrutural da indústria, especialmente na criação de empregos de qualidade numa economia capitalista. Somos uma economia dependente de commodities, de uma desastrosa reprimarização, que nada mais é do que um extrativismo do grande patrimônio natural do planeta que nos cabe cuidar, acima de sua capacidade de regeneração. E o “liberou geral” nos põe no caminho do colapso ecológico. Os trágicos e até criminosos desastres ambientais na mineração são o sinal no momento. Mas algo mais grave está em curso e pode sair do controle: é o que se passa em torno do agronegócio. Não estamos nos dando conta da gravidade da contaminação e, consequentemente, da destruição associada ao modelo de agronegócio adotado, hoje valorizado e totalmente liberado em sua agressividade de “moderno”, “técnico” e “pop”. Um debate que nem consegue sair dos círculos especializados é o que o Governo Bolsonaro fez ao entregar ao agronegócio tudo, para que ele de fato seja o “tudo” da vinheta publicitária: deu, de bandeja, para os donos dos negócios dos ruralistas, o Ministério da Agricultura, a agricultura familiar, a FUNAI, o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama e as licenças ambientais. Está legalizada a total colonização do território, contra povos tradicionais, quilombolas, posseiros, pescadores, agricultores familiares, áreas de preservação natural, sem regulação ecológica ou social.
Antes que o pior aconteça – porque vai acontecer com esta visão do atual governo –, já temos muito sinais destacados nos círculos especializados de ecologistas, agrônomos e agentes de saúde. Nossos alimentos estão contaminados por agrotóxicos, mais do que seria admissível. Os ambientes rurais estão contaminados e as pulverizações de veneno nas lavouras por aviões tem provocado verdadeiros desastres em territórios urbanos contíguos. As águas estão sendo contaminadas e, dado a integração total do sistema hídrico, chega também contaminada nas nossas torneiras urbanas de água “tratada”.
Um elemento mais sistêmico em termos de destruição do agronegócio é sobre os insetos, que estão na base de toda a rede de interdependências que faz a vida conseguir ser vida. O caso das abelhas é o mais emblemático, tanto na produção do mel e seus derivados como, sobretudo, na polinização de todas as plantas. São alarmantes as notícias de mortandade de abelhas, que se conta em bilhões, devido à contaminação das lavouras. Estamos atingindo um dos pilares da sustentabilidade da vida. E temos ainda que ver o agronegócio defender que agrotóxicos são fitossanitários.
Até quando vamos aguentar tal desgoverno?
Rio, 08/04/2019