Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

A nossa crise política tem como processo subjacente a perda de intensidade da democracia que conquistamos lá nos anos 80, enfrentando a ditadura militar e definindo novas bases institucionais, fundadas nos direitos de cidadania para todas e todos como regra do viver em coletividade. Nunca é demais lembrar que a democracia, como processo histórico, vem prenha de possibilidades, mas não aponta automaticamente para a solução de nossos problemas estruturais. Para acontecerem mudanças de fato sujeitos coletivos democráticos tem que liderar movimentos irresistíveis, conquistar e mudar o poder de Estado, para transformar a economia e, sobretudo, a sociedade. É forçoso reconhecer que novos sujeitos coletivos apareceram, renovaram-se movimentos sociais e o movimento sindical, novas formas de organização política foram estabelecidas, uma onda democratizadora avançou. O potencial de mudanças daí decorrentes, porém, acabou mal tendo começado. O tal “sistema de poder real” se readequou à nova situação e, num certo sentido, a democracia se ritualizou e perdeu significado político. Isto explica a preocupante expansão no seio da cidadania de um sentimento de deslegitimação da política e, no bojo, da própria substância da democracia como método possível e, sobretudo, civilizatório de transformação social. 
Nascemos como sociedade de conquista, de fora e voltada para fora, colonial, autoritária, escravocrata, socialmente excludente e com uma economia de rapina, destrutiva do fantástico patrimônio natural e altamente concentradora de riquezas nas mãos dos donos de gado e gente. Isto ainda está aí a nos marcar profundamente, mesmo com muita coisa totalmente diferente na sua forma, tanto no mundo de expansão e consolidação do capitalismo, como no nosso seio. Os “donos” do Brasil se diversificaram e ampliaram seus domínios. Continuam sendo poucos, talvez os tais 1%, mas estão em todas as esferas da sociedade, do agronegócio e extrativismo à infraestrutura, à indústria e ao comércio, ao sistema bancário e financeiro, na grande mídia. Estes são os donos reais, que conseguem impor agendas para a democracia, corrompendo e comprando lealdades e vontades a seu serviço nas três esferas do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. 
A crise política que estamos vivendo precisa ser vista em sua profundidade, como um câncer político com metástases que contaminam toda a sociedade. Estamos diante de uma crise de hegemonia numa jovem democracia, no sentido mais pleno de hegemonia de projeto e direção. Esgotou-se o que nem bem nasceu, mas nada de novo está no horizonte, pois o velho que destruiu as possibilidades de avançarmos em mudanças não tem projeto e nem direção, é poder bruto, de domínio dos negócios e interesses de quem tem poder para tanto, comprando lealdades e servilismos, com muita corrupção, sempre que necessário for, e criando um imaginário, via uma mídia também servil, de não alternativas senão dos “donos” de sempre. Basta olhar no patético ministério que vai compor o possível governo Temer, cheio de velhas raposas da política nacional. 
Claro, a conjuntura produz fatos numa velocidade incrível, com muita fumaça para que a gente pouco veja. Os fatos do dia a dia não alteram o quadro de fundo, mas tem a ver com ele. Por exemplo, quase nos mesmos dias em que a comissão do impeachment do Senado aprovou o relatório contra Dilma e o remeteu para a aprovação no plenário, Cunha foi suspenso como deputado e presidente da Câmara pelo STF. Que relação tem tais fatos, para além do papel preponderante exercido por Cunha na abertura do processo de impeachment contra Dilma e de sua liderança na votação na Câmara? De essencial mesmo é a crise da política ameaçando substancialmente a democracia como conquista lá atrás. De diferente, uma mulher de história pessoal exemplar, mas sem grande vocação para liderança política democrática, e um homem que simboliza a própria corrupção que tomou conta da política, mas com ousadia política e determinação para manter seu poder por qualquer meio possível. Aliás, membro e liderança do mesmo partido de Temer. 
Sem valorizar o Cunha, verdadeiro chefe de quadrilha, importa pensar no que isto pode significar no imediato como desarticulação daquele impressionante conjunto de deputados, dos mais diferentes partidos, seus leais escudeiros. Tenho escrito e reafirmo aqui que no Congresso está o câncer mor, capaz de matar nossa democracia. O câncer é o próprio bando, até hoje, no entorno de Cunha, sua tropa de bandoleiros com capacidade de dominar aquela casa legislativa fundamental numa democracia. A tal maioria deles não representa a cidadania em termos políticos, com sua diversidade social e de opções. Eles são eleitos, sem dúvida, mas fiéis a pequenos interesses, familiares e paroquiais, nada republicanos por sinal. Conseguiram se eleger dadas as regras políticas que temos, com uma plêiade de partidos sem identidade, com coligações e com financiamento empresarial que tem manipulado o jogo eleitoral a seu favor. A questão é: será que com o chefe de bando com mandato suspenso, o Cunha, o bando terá a capacidade de obstrução do que importa ou de votação de pautas de destruição de direitos e de desmanche da própria democracia? Liderança alternativa no bando não existe ou, então, ficou na sombra até aqui. Aliás, o Cunha tinha servidores leais e não grupo coerente em torno a ideais e propostas. Sem poder da presidência e sem as facilidades financeiras e de favores que ela oferece, será que o Cunha terá algum poder? Afinal, algo pode mudar em Brasília de modo a nos surpreender, a cidadania sonhadora da democracia radical e de suas possibilidades para o Brasil? 
De toda forma, mesmo acontecendo algo fora do esperado e afetando o aparentemente inabalável PMDB e suas artimanhas de sempre estar de bem com o poder de ocasião – sem dúvida, uma das forças políticas responsáveis pelo esvaziamento da democracia como possibilidade de mudanças substanciais no poder e na economia, permitindo a emergência de uma sociedade mais justa e sustentável -, vejo no nosso horizonte imediato mais e mais crise política. Estamos entrando num túnel sem luz e nem sabemos se tem saída de outro lado. O jeito é construir nossas trincheiras democráticas e resistir. Mais que resistir, precisamos usar o espaço da resistência para voltar a nos reinventar, definir um horizonte estratégico de possibilidades democráticas, desde aqui e agora. Onde erramos e por que erramos? O que pode ser feito de outro modo? Mas, acima de tudo, o que pode voltar a conquistas corações e mentes, num processo de construção de um novo imaginário democrático, mobilizador da cidadania, tornando-se movimento irresistível? Sempre é possível, mesmo nas piores adversidades, precisamos acreditar e agir. Mas o pior pode vir antes e trazer muito sofrimento. Viver é uma aventura, sem dúvida!

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