Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Estou em Berlim, onde participei de dois eventos, como convidado. O primeiro, na sexta feira, dia 12 de junho, na Conferência Accountability now!, em que fui membro da mesa redonda de perguntas e respostas Think human rights globally: on accountability at the international level (Pense globalmente os direitos humanos: sobre responsabilidade no nível internacional, em tradução livre). O evento foi organizado pela Fundação Heinrich Böll, do Partido Verde, e pelo Instituto Alemão para Direitos Humanos.
No segundo evento, Zivilgesellschat und Krise(n) – Zivilgesellschaft in der Krise? (Sociedade civil e a Crise(s) – Sociedade civil na Crise?, em livre tradução), no dia 13 de junho, fiz a palestra de abertura abordando a questão das interdependências, contradições e confrontos da sociedade civil mundial com a globalização nas últimas três décadas. Este evento foi organizado pela Weed (World Economy, Ecology & Development) como fórum de debates, com o objetivo de celebrar os 25 anos de sua existência como organização alemã de cidadania ativa. Amanhã, dia 15, ainda participarei de um terceiro evento, em Freiburg, no Sudoeste da Alemanha, organizado pelo Arnold-Bergstraesser Institut e KoBra-Kooperation Brasilien. Aí falarei sobre as contradições brasileiras no enfrentamento das questões sociais e ambientais, tendo dificuldade de tratá-las no que elas são: mutuamente dependentes.
Participar de tais eventos representa, para o Ibase, um reconhecimento do seu papel na conexão entre organizações e movimentos da sociedade civil brasileira com organizações de cidadania ativa alemã e mundial. Mas é, também, um modo de fortalecer parcerias, tecer novas conexões e aprofundar diálogos mundiais. Afinal, nos últimos anos, diminuíram os momentos e os espaços para pensarmos estrategicamente os desafios diante tanto de radicalização de intolerâncias, barbarismos e guerras, como de uma globalização econômico-financeira que se reinventa e gera ainda mais desigualdade social e mais destruição ambiental.
Dos debates aqui em Berlim destaco a viva preocupação com a pouca elaboração nas últimas décadas de um pensamento crítico sistemático sobre o capitalismo enquanto tal, nesta fase de sua globalização. Aumentaram e se diversificaram as vozes de organizações da sociedade civil, na Alemanha, com iniciativas importantes e vitórias a comemorar. Foram lembradas a campanha vitoriosa que levou a parar com o programa de energia nuclear, os avanços na energia solar produzida e gerida por pequenas comunidades, a luta contra a agricultura industrial e pelo fortalecimento da agricultura orgânica de agricultores familiares e suas cooperativas, entre tantas outras. São lutas focadas, com capacidade de mobilizar setores específicos mais diretamente envolvidos, mas não contribuem para enfrentar e transformar a lógica de um modelo de economia e poder embutido na globalização.
Aí foi lembrada a questão do papel do governo e bancos alemães que, através da “Tróika” (Comissão Européia, Banco Central Europeu e FMI), impuseram duros programas de ajuste estrutural para os países do Sul da Europa – Grécia e Espanha, em particular – que destroem empregos em massa e inviabilizam políticas sociais, levam à asfixia econômica e violam, de forma sistemática, os direitos humanos. Tudo em nome da preservação dos interesses financeiros hegemônicos, que podem acabar com o próprio projeto da União Européia. Outro exemplo lembrado é o da recente reunião do G7, também na Alemanha, onde a voz e a pressão forte da sociedade civil não se fez sentir na intensidade necessária, dada a fragmentação de lutas e a falta de análise crítica do sistema enquanto tal, com propostas alternativas mobilizadoras e agregadoras das forças sociais vivas da sociedade civil.
Claro que tudo isto me fez pensar em nós, no Brasil. Na difícil conjuntura que atravessamos, descobrimos também que nos faz falta um pensamento crítico acumulado, que aponte alternativas como direção a seguir. Tivemos vitórias, sem dúvida, mas como está difícil definir um rumo no sentido de mudanças democráticas substantivas, para além de um desenvolvimentismo “reformista conservador” – na expressão de André Singer. Precisamos urgentemente, mas ainda não temos agendas estratégicas de transformação para além da globalização, agendas que mobilizem, e agreguem a cidadania viva brasileira e que gestem poderosos movimentos. Enquanto isto, esboçam-se iniciativas empresariais, no governo e no Congresso, que podem nos tornar ainda mais integrados na lógica social e ambientalmente insustentável da globalização capitalista neoliberal, levando a depender mais e mais do predador extrativismo mineral e do agronegócio.
Mas um ponto me chamou mais a atenção. Começam a se levantar com mais intensidade vozes que mostram o vazio de crítica ao capitalismo como paradigma civilizatório desde mais ou menos os anos 90 da década passada. Para isto, contribuiu muito, ao menos na Alemanha e na Europa, a queda do muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética. Mesmo tendo sido um fracassado projeto socialista, o próprio debate de alternativas ao capitalismo perdeu substância. Reconhece-se – não por todo mundo, mas por muita gente – que o Fórum Social Mundial e seu mote agregador de “outro mundo é possível” já apontava para a necessidade de voltar a buscar alternativas ao capitalismo globalizado. No entanto, também perdeu densidade e capacidade em aprofundar as buscas e os debates. O ativismo passou a ser orientado mais para vitórias parciais. A elaboração teórica crítica também perdeu espaço na academia.
Mas um fato histórico apontado, sobretudo no segundo evento do qual participei, foi a própria mudança do capitalismo em suas estratégias de acumulação. O Prof. Elmar Altvater, por exemplo, destacou que o grande capital, sem se sentir ameaçado por alternativas e liberado para disputas com estratégias globais de acumulação, passou a formas de negócios que não dependem mais tanto do chão da indústria, com grande concentração de trabalhadores num mesmo lugar. Partes de produtos podem ser produzidas em diferentes partes do mundo, com diferentes condições de exploração do trabalho, e juntadas depois. Mais pessoas trabalham, mas fragmentadas e unificadas pela grande corporação por trás. Tudo aumenta o potencial de lucros e reduz o risco de blocagem. Neste processo, a solidariedade da classe trabalhadora é afetada.
O capital também passou a moldar leis e políticas de forma mais direta, capturando e adaptando o poder estatal e as organizações multilaterais para as suas necessidades de valorização e acumulação. Foram destacados os exemplos da legislação para proteção dos investimentos, da propriedade intelectual, os acordos de livre comércio, o Global Compact das grandes corporações com a ONU e muito mais. Mas o capitalismo globalizado moldou estilos de vida adequados aos seus produtos, mercantilizou muito o próprio modo de viver, afetando com isto a sociedade como um todo, não no sentido dos direitos de igualdade e sim do individualismo e consumismo. Os imaginários foram capturados.
Isto tudo aconteceu, mas não virou prioridade de reflexão e análise nas universidades e nem entre as organizações e movimentos da sociedade civil, seja em nossos países, seja no seio da nascente cidadania planetária. Por exemplo, temos muita produção analítica importante focada sobre a destruição do meio ambiente e a mudança climática, com seus impactos sociais. Mas estratégica e politicamente, pouco avançamos em associar tal produção com o capitalismo enquanto paradigma causador da destruição, como se apenas uma regulação estatal melhor fosse capaz de levar as grandes corporações econômico financeiras a serem mais responsáveis, justas e sustentáveis.
Enfim, voltarei ao Brasil com a sensação que algo começa a emergir, ainda indefinido. O fato é que assim como nós, no seio das organizações e movimentos sociais da sociedade civil brasileira, aqui na Europa há um mal estar que se alastra a exigir iniciativas mais ousadas e consistentes de busca de alternativas. Assim não dá para seguir por muito tempo!