Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Por mais que cada sociedade tenha especificidades e que a sua história seja única, no mundo globalizado de hoje os movimentos políticos se fazem num quadro de interdependências, pressões e tensões, possibilidades e limites, ventos e ondas condicionados pela geopolítica mundial, fato que obriga a avaliar com mais precisão as lutas históricas concretas, bem como o poder político e as políticas que daí decorrem. A nossa crise tem muito a ver com nós mesmos, com o Brasil, com nossa estrutura social e econômica, com nossa cultura e história, com o quinhão do planeta Terra que ocupamos. Mas nunca é demais lembrar que, desde a conquista e colonização, fazemos nossa história atrelada à gestação e ao nascimento, à consolidação e ao domínio econômico do capitalismo no mundo. Ao contrário de nos tornar independentes, estamos cada vez mais e mais dependentes do que se passa nos centros econômicos e financeiros mundiais. Movemo-nos no meio das contradições de uma civilização, dita moderna, que é determinada, em última análise, pelas possibilidades de acumulação de mais e mais riquezas nas mãos dos detentores de capital, independentemente da desigualdade social e da destruição ambiental – hoje planetária – que isto possa provocar. A concentração de capital no mundo é tal que menos de 1% detêm riqueza equivalente a 50% da humanidade condenada a viver das sobras. Desigualdade igual temos no nosso Brasil, apesar de algumas melhoras para os mais pobres, que tanto incomodam os tais “coxinhas” no recente processo que nos levou à crise política atual.

Mas em que lembrar o nosso lugar no mundo pode ajudar a entender a nossa situação no aqui e agora? Minha hipótese é que precisamos sempre ter presente e associar o movimento orgânico ao ocasional nas diferentes conjunturas, para que nosso olhar e nossa análise avaliem adequadamente a combinação histórica de tais movimentos e, assim, a especificidade de nossa história no processo mais geral. Afinal, a crise política e econômica que vivemos tem lances trágicos e cômicos que são só nossos e de mais ninguém. As personagens protagonistas da história política brasileira deste inesquecível 2016 são nossas e únicas. Têm cara, nome e endereço, além de falarem português. Mas o que está por trás e que também é parte na moldagem do drama que vivemos e que ameaça profundamente a nossa democracia?
Não busco desculpas, mas luz para pensar e saber como reagir, pois assim como derrotas democráticas têm forças ocultas por trás, vitórias também contam com elas e até com erros delas. A questão fundamental na análise é ver a natureza do que chamo de orgânico e sua manifestação associada ao ocasional. Algo é orgânico por ter capacidade de determinar a estrutura econômica, social e política de uma sociedade. No fundo, refiro-me ao modo como se estruturam as classes sociais. No meu modo de ver, as forças orgânicas hegemônicas obrando nos fundamentos da sociedade brasileira são interesses, novos e velhos, de grupos que se baseiam e têm como condição de seu poder os vínculos com o grande capital econômico e financeiro internacionalizado. É uma pequena e poderosa classe de brasileiros mesclada com estrangeiros, de um modo bem moderno “dona de gado e gente”, que é estruturalmente ligada ao capital mundial, tanto produtivo como especulativo. Enfim, são mais que sócios do capital global, pois o integram organicamente, são a parte brasileira dele. Isto vai de investidores a especuladores em bolsas, dívida pública e controladores de empresas industriais e comerciais, donos de construtoras e dos grandes bancos, de minas, terras e do agronegócio, da grande mídia.
O ocasional é o que se passa no Planalto, nas instâncias do poder constituído. No momento, é o Temer e seu governo, com idas e vindas, com revelações de bastidores, demissões e substituições de ministros. É o Cunha, o Renam e o Jucá. É a Lava-Jato e o juiz Moro. É aquela maioria nada orgânica no Congresso. São as resistências nas ruas. É o processo do impeachment, que atropela e não resolve a crise em que estamos mergulhados. Mas, reafirmo, o ocasional é a história se fazendo, é o drama do dia a dia, onde as dúvidas e paixões se sobrepõem a tudo mais, que a seu modo moldam o movimento orgânico, a sua intensidade e resultados práticos. História é feita por gente concreta, com seus sonhos e vontades, mesmo em condições em que ninguém controla efetivamente.
No momento, orgânica no mundo, portanto no Brasil também, é uma rediviva onda de capitalismo neoliberal, que está a submeter as sociedades a seus interesses, manietando as suas democracias, que ousam criar obstáculos a ela ou, simplesmente, condicionalidades como foi no caso brasileiro e dos governos ditos progressistas da América do Sul. Nosso drama, em suas especificidades, é o drama de muitos outros povos. Não são exércitos imperialistas que nos ameaçam, são forças organicamente partícipes da globalização, que convivem com a gente e compartem o mesmo território e cultura, que neste momento estão nos impondo de modo drástico, pela via das instituições democráticas e do impeachment, um ajuste do poder, da economia e da própria sociedade brasileira a seus interesses.
A democracia está sendo restringida, mas sem negá-la na formalidade. A democracia foi simplesmente conquistada por tais forças orgânicas montadas nos oportunistas de ocasião. A empreitada é de risco. Afinal, os aliados políticos “legais” são de ocasião, nada orgânicos. Ontem, ainda, eram aliados de outras forças. A agenda de mudanças imediatas de interesse das forças orgânicas – ajuste pró-mercado, privatizações, desconstrução de direitos e asfixiamento de políticas sociais minimamente inclusivas etc. – implica em ceder aqui e ali. Afinal, as forças com poder orgânico avançaram sobre a democracia sem ter capacidade direta de voto. Seu modo de operar é por vias tortuosas, na sombra, subornando e comprando. E a roda segue. Para manter a institucionalidade democrática, o calendário eleitoral impõem condicionalidades. Mais, impõe custos que os “donos de gado e gente” tem que arcar, mesmo de forma ilegal como sempre. Em política, aliás na história, nada é definitivo, tudo pode mudar… mesmo levando gerações e séculos até. Portanto, estamos em uma situação extremamente movediça, onde tudo pode se alterar, ou não, de um momento a outro.
O mais grave que vejo nisto tudo é o laço entre o orgânico e o ocasional. Este laço é feito pela disputa de hegemonia. Aí perdemos e aí está o drama com feições que são só nossas. Fomos derrotados no sonho, nos princípios e valores traduzidos em um projeto imaginário de democracia para um Brasil, uma sociedade e um país mais justo e sustentável. Fomos derrotados no plano do convencimento das gentes. Uma maioria se formou em prol do manietamento na democracia. Pode ter sido, como de fato foi, manipulada e enganada, mas a hegemonia passou para o lado da liberdade do mercado e não da liberdade do povo escolher. A grande mídia, parte das forças orgânicas, dado seu enorme controle privado do espaço de expressão pública, fez uma pregação sem igual contra os rumos da democracia no Brasil. E nós? Erramos muito, mais da conta! Não vou culpar ninguém em particular. O fato é que não exigimos mais de um governo de conciliação de interesses como foram os governos petistas nos últimos 13 anos. Abandonamos um conjunto de propostas de reformas transformadoras, ficando contentes com as condicionalidades sociais e as políticas sociais que isto permitiu financiar. Abandonamos a disputa de hegemonia, do espaço público, da alimentação de sonhos mobilizadores. De mudança estrutural mesmo nada temos a comemorar. Pior, nosso sonho de democracia substantiva foi definhando, contentes com ganhos menores em termos de renda e consumo. Bastou a coincidência de uma conjuntura internacional desfavorável com a perda de rumo do governo para que a crise e o golpe “legal” na democracia se consumassem.
Termino afirmando mais uma vez que precisamos recomeçar desde aqui e agora. As resistências que a conjuntura nos impõem precisam ser transformadas em oportunidades de refazer sonhos, rever valores e princípios, reconstruir um imaginário capaz de disputar hegemonia e revitalizar a democracia entre nós, para nos dar um projeto de futuro diferente do imposto pelo liberalismo globalizado e colonizador do livre mercado, a lei férrea e selvagem do mais forte a ditar nosso destino. Libertemos a democracia das amarras privatizantes que lhe estão sendo impostas hoje. Democratizemos a democracia para mais inclusão social e para a sustentabilidade na relação com o grande território que nos coube zelar para o bem do planeta! Esta pode ser a onda para ativistas de direitos humanos, de justiça socioambiental e de cidadania sonhar em animar nos anos pela frente.

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