Bianca Arruda
antropóloga e pesquisadora do Ibase
O veto do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de distribuição de itens básicos de higiene a estudantes de baixa renda de escolas públicas e pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade extrema é uma evidente violação dos direitos humanos e da cidadania. É também expressão nítida do modo como agem o atual presidente e seus aliados. Trata-se de um governo que não reconhece as diversidades da população e não propõe políticas que atendam a todas e todos. Um governo que deliberadamente ignora a realidade brasileira e não se propõe ao diálogo com a cidadania ativa.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o acesso à higiene menstrual deve ser tratado como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. Nesse sentido, pobreza menstrual é um conceito usado para descrever um fenômeno multidimensional que afeta as pessoas que por motivos financeiros, de infraestrutura e falta de conhecimento não têm plena capacidade de cuidar da sua menstruação. Ou seja, diz respeito não somente a questão da falta de acesso a produtos de higiene menstrual, mas também às condições de infraestrutura adequada e o acesso à informação. Ainda segundo a ONU, no Brasil, 25% das meninas entre 12 e 19 anos deixaram de ir à aula alguma vez por não ter absorventes.
Além dos alertas vindos da ONU, nos últimos anos, tivemos localmente a produção de pesquisas que apontam que a falta de itens de higiene no período menstrual é uma realidade para muitas meninas e mulheres brasileiras. Dados amplamente divulgados evidenciam que uma a cada quatro adolescentes não possui absorvente ao menstruar, que 1,5 milhão de brasileiras vivem em residências sem banheiro e que 3% do total de meninas estudantes brasileiras (mais de 300 mil estudantes), estudam em escolas que não possuem banheiro em condições de uso, condições mínimas para assegurar a higiene menstrual. Os dados são da campanha Livre para Menstruar e do estudo “Pobreza menstrual no Brasil. Desigualdades e violações de direitos” efetuado pela Unicef.
O veto do presidente Jair Bolsonaro incide objetivamente sobre a vida, saúde e autonomia dessas meninas e mulheres que além de se verem privadas de participarem plenamente de sua vida social, tendo por vezes que se ausentar da escola ou do trabalho durante o período menstrual, também colocam sua saúde em risco ao recorrerem ao uso de papel higiênico, jornal e pedaços de tecidos como substitutos aos absorventes, o que pode ocasionar lesões e infecções.
O preconceito e o tabu em relação à menstruação e demais assuntos relativos aos processos corporais e à sexualidade são expressão do conservadorismo e do machismo de nossa sociedade. Como consequência, o desconhecimento sobre o cuidado da saúde menstrual pode afetar até mesmo as pessoas que não estão em situação de pobreza, mas que dependem de outras pessoas para aquisição de itens de higiene. Além disso, faz com que o problema seja invisibilizado de forma sistemática.
Políticas públicas podem e devem mudar essa realidade, garantindo acesso aos itens básicos de higiene menstrual e, principalmente, promovendo a educação sexual. Essa é uma maneira de incidir na sociedade para que a menstruação e a sexualidade deixem de ser um tabu.
A tentativa de barrar o projeto foi um duro golpe para a sociedade civil, especialmente para os movimentos de mulheres e as muitas pessoas que sofrem com a pobreza menstrual (meninas, mulheres, homens trans e pessoas não binárias que menstruam). Mas se engana quem acha que a iniciativa foi enterrada. Toda a mobilização e a articulação efetuadas para trazer visibilidade e propor como matéria legislativa um tema que ainda hoje é tabu – como tudo que se relaciona a autonomia dos corpos – já se tornou marco na luta feminista. A aprovação de projetos similares país afora, como nos estados do Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraíba, demonstra a força desse movimento. Certamente, o tema não será esquecido e sua importância para a garantia da cidadania de meninas e mulheres será reconhecida.