Jailson de Souza e Silva
texto originalmente publicado no Notícias e Análises
O desafio fundamental colocado para o governo de uma cidade, no século XXI, é garantir, em primeiro lugar, que os seus cidadãos sejam reconhecidos e legitimados em seu direito à diferença , ou a “autenticidade”, nos termos de Rousseau; em segundo lugar, de forma indissociável, que todos tenham direito à igualdade no plano da dignidade humana. Esse “projeto de cidade”, radicalmente republicano e democrático, deve nortear as políticas públicas em todos os âmbitos. Os “grandes eventos” só têm razão de ser quando subordinados a esse projeto maior.
Assim foi na experiência de Barcelona, a mais bem sucedida no que concerne à contribuição de um grande evento para o desenvolvimento de uma cidade. De fato, os Jogos Olímpicos realizados naquela cidade em 1992 estavam integrados a um desenho de planejamento, gestão e intervenção urbana iniciada nos anos 80. No caso, os Jogos serviram a um plano global de desenvolvimento da cidade e isso, além de muitas outras ações estruturantes, é que explica o seu impacto.
O que acontece, todavia, na maioria das cidades é que estas funcionam apenas como um suporte para um grande espetáculo que mobiliza montanhas de recursos públicos e submete a sua população a um conjunto de interesses localizados, em geral vinculados a setores do mercado, particularmente o imobiliário e das empreiteiras. Nessa concepção, o princípio do “custo-benefício” não tem como foco os interesses da maioria da população. Não há projeto global de desenvolvimento, não há participação das organizações da sociedade civil no processo de planejamento, não há mobilização popular em torno das principais demandas da cidade e, para não ser exaustivo, não há fóruns públicos e transparentes de acompanhamento dos gastos públicos e a avaliação permanente de sua devida utilização. Acima de tudo, os imensos recursos financeiros, políticos e de gestão reunidos não estão dedicados à realização de um projeto de polis democrático e humano.
Nesse contexto, torna-se natural, em nome do Evento, a intervenção urbana hierarquizada, autoritária, na qual os gestores presentes do Estado sentem-se no direito de dispor de forma autônoma do território e dos recursos públicos, mesmo quando suas ações impactem de modo profundo a vida de milhares de cidadãos. Que, objetivamente, não são consultados no processo. Os moradores das favelas, em particular, são os mais afetados por essa lógica.
Remover (sic!) uma comunidade popular estabelecida, um habitar na qual vivem pessoas há décadas é um gesto de violência estatal que só se justificaria por objetivos de grande relevância, em um quadro no qual aquela solução radical não pudesse ser evitada. Todavia, não é isso que assistimos no Rio de Janeiro. O Evento torna-se um fim em si mesmo; logo, as muitas demandas dos cidadãos, em particular os mais pobres, são instrumentalizadas diante dele. E, desse modo, seu possível papel indutor do desenvolvimento se torna mera propaganda, simples artifício para o atendimento de interesses distantes da ampliação da dignidade humana e do direito à diferença.
Apesar do processo em curso, ainda é possível sua mudança. É, acima de tudo, fundamental que os moradores da cidade e do país se coloquem diante dos grandes eventos não como uma inevitabilidade que nos leva a suportar as lógicas autoritárias e particularistas. Precisamos colocá-los a serviço de um projeto de cidade global, integrado, democrático e fraterno. Ainda há tempo para isso. Os caminhos são vários, escolha o seu.
 
*Jailson de Souza e Silva é Professor da UFF/RJ e Coordenador Geral do Observatório de Favelas.

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