Por Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase
Em momentos difíceis, como o que estamos passando, os elos políticos da vida em coletividade são tensionados ao ponto de se esgarçar o tecido social de cima a baixo da sociedade. Insisto, de cima a baixo e não de baixo para cima. Olhando de baixo para cima, as enormes fissuras e férreas desigualdades sociais, exclusões até, são a herança do entrar na modernidade do mundo pela colonização estrangeira, usurpação de terras e escravidão. Tornamos-nos Brasil assim e está difícil mudá-lo. Sob quaisquer indicadores, mas, sobretudo os de cidadania, que tem na sua essência a condição política da igualdade de todas e todos, somos um país campeão de desigualdades sociais e de violações de direitos humanos. A nossa aparente “paz social” tem sido mantida pela repressão institucional sistemática, com violência e morte, nos territórios e contra brasileiras e brasileiros que ousam ou possam parecer se insurgir contra a “ordem dominante”.
 A grande novidade de nossos 500 anos de modernidade foi conquistar uma democracia legítima na derrocada da ditadura militar pela mobilização cidadã. Este fato fundamental de nossa história recente abriu a porta, ao menos, para mudar nossa estrutura social pelo caminho da disputa institucionalizada, pelo reconhecimento da diferença estrutural e abertura de solução na luta de classes no espaço da política, pela democracia política enfim. Frágil democracia, mas democracia política, para todos, sem discriminações sociais. Lembro algumas discriminações que restringiu de morte o potencial de regimes aparentemente democráticos de nosso passado pouco republicano, como o voto restrito aos donos de gado e gente – “de posses”, enfim -, com o não reconhecimento do direito de voto para mulheres ou, até muito recentemente, aos analfabetos adultos. O fato é que o primeiro efeito da democracia jovem nos seus 30 anos foi o alargamento da democracia política. Isto, por si só, não muda, mas é uma condição fundamental.
 Pois bem, estamos pondo em risco a conquista da democracia política e, com ela, a própria política como um bem comum coletivo capaz de nos permitir mudar o que precisa ser mudado. O que me preocupa no imediato não é o impeachment ou não impeachment, mesmo sabendo que ele é parte do problema que estou apontando. O mais grave é que estamos ao ponto de romper com os frágeis vínculos de convivência e compartilhamento que conquistamos. O ódio está no ar, não nos reconhecemos mais como cidadãs e cidadãos de mesmos direitos políticos. Ter posição e defendê-la publicamente é da essência da democracia, mas desde que seja reconhecido o direito igual de ter posição e defendê-la publicamente a todos os demais. É isto que neste difícil momento podemos romper a democracia como espaço de construção do possível e nos jogar num fosso negro onde os aventureiros prosperam.
 A bem da verdade, precisamos reconhecer que nosso voto de cidadania produziu algumas novidades, mas dominantemente deixou-se vender para os mercadores de promessas de ocasião, como se eleição fosse mercado ou leilão do “quem dá mais”, com financiamento escuso dos que zelam, sobretudo pelos seus negócios e sua acumulação de riquezas sem limites. Mas temos uma institucionalidade que pode operar. Precisamos é exercer nosso poder de cidadania. A política, numa democracia, é um bem comum. Zelemos por ela e não nos insurjamos contra ela. O problema é a privatização da política e não a sua ausência. Não pode existir democracia sem política posta no centro. Podemos lavar todas as nossas sujeiras fortalecendo a política e a democracia e não as destruindo.
 Volto ao título desta minha crônica. Precisamos recolocar no centro de nossa atual disputa política os princípios éticos da convivência e compartilhamento para que os valores da liberdade, da igualdade, da diferença, da solidariedade e da participação voltem a operar plenamente e encontremos a melhor saída concertada entre todas e todos. Conviver e compartilhar é reconhecer as outras e outros, mesmo exercendo o seu direito à diferença de ser e pensar, como detentores dos mesmos direitos que nós. A intolerância que prospera neste momento é destruidora deste patrimônio comum que nos construímos últimas décadas. A cidadania só é cidadania se compartilhada, se vivida como tal por todas e todos. Isto implica em praticar o princípio do cuidado. Não existe vida natural sem cuidado. Mas também não existe democracia política possível sem cuidado coletivo.
 Estamos num momento difícil, sem dúvida. Podemos superá-lo dando um salto de qualidade se formos radicalmente democráticos, mas com muito cuidado, respeitando os limites políticos e sociais necessários para conviver e compartilhar. Perder conquistas fundamentais no caminho de nossa jovem democracia pode ser um desastre, uma herança que nossos netos vão sofrer para superar.
 
Rio de Janeiro, 27/03/2016.

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