Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase

Fui convidado por Paul Raskin, do Instituto Tellus, Boston, a participar do debate do GTI – Great Transition Initiative (algo como “Grande Iniciativa para a Transição”) sobre a nota por ele produzida: How do we get there? The problem of action (“Como chegar lá? O problema da ação” – em tradução livre). A questão trazida por ele se refere ao problema da ação para alcançar uma civilização planetária. Tal debate me anima muito na medida em que dialoga com todo um processo de reflexão e ativismo pessoal, no Ibase, no ciclo das grandes conferências da ONU dos anos 90, do século XX, e no Fórum Social Mundial, especialmente de 2001 a 2012.
Minha análise começa assinalando que a ação coletiva depende de imaginários mobilizadores (visões, valores e propostas) combinados com circunstâncias históricas dadas. A vontade e a capacidade de agir são coisas que a gente forma e, portanto, dependem apenas de nós mesmos. Mas as condições históricas dependem de todos os outros sujeitos coletivos e do momento das sociedades concretas que fazemos parte, elas como sínteses de múltiplas contradições.
O esforço do GTI de produzir os cenários possíveis de transição exploram exatamente as possibilidades de combinações entre as circunstâncias históricas dadas e as orientações e opções estratégicas dos sujeitos coletivos em luta política e cultural sobre o mundo. Por exemplo: pode ser reproduzido o mesmo mundo, em diferentes variantes, sem mudanças substantivas. Mas o mundo pode ser levado à barbárie, ficando muito pior, ameaçando a sobrevivência da humanidade e afetando a integralidade dos sistemas ecológicos Planeta, nosso bem comum maior. Pode, sem dúvida, ser alimentado um virtuoso processo de transição para um mundo melhor, a civilização planetária. A questão que fica é sobre a ação coletiva como força transformadora variável diante das circunstâncias históricas. Esta não é uma questão de análise, mas de invenção que só pode ser feita por cidadania concreta, em territórios concretos, lá onde vive. Como se forjam sujeitos coletivos como forças históricas instituintes e constituintes de poderes, economias e sociedades? Em termos simples, pode-se afirmar que as condições históricas não geram sujeitos coletivos. Estes se fazem na e pela ação, pela luta, na disputa de possibilidades que as condições apresentam, a partir do que sentem, sonham e veem.
Este preliminar é importante pois, de um modo ou outro, vivemos espalhados pelo Planeta Terra, em territórios muito específicos, contidos em fronteiras por barreiras de Estados Nacionais, com segregações sociais e territoriais internas, entre pobres e ricos, negros e brancos, grandes fazendas e comunidades indígenas e quilombolas, crentes e não crentes, e muitas outras. A globalização capitalista neoliberal, comandada pelas grandes corporações econômicas e financeiras, foge ao controle de Estados e dos fracos organismos multilaterais existentes, impondo o livre mercado como forma de gerir o Planeta e as diferentes sociedades. Contraditoriamente, a globalização acabou alimentando a emergência de uma consciência de pertencimento ao um mesmo mundo, a uma mesma humanidade, para além da diversidade intrínseca natural, cultural e histórica existente no Planeta. Mas, ao mesmo tempo, a globalização capitalista está concentrando riquezas e gerando enormes desigualdades sociais intra e inter povos, com destruição ambiental sem limites. Pior, com o ideal do desenvolvimento e crescimento operou-se uma “colonização de corações e mentes” para o consumismo, o individualismo e a renda como valores básicos.
Lembro aqui que o lugar de escrita desta crônica se dá no Rio de Janeiro, Brasil. O Governo Temer está fazendo um brutal ataque a direitos conquistados e o desmonte de políticas sociais e ambientais, de reformas constitucionais que descaracterizam a democracia e priorizam o privado e as forças de mercado, com volta de um capitalismo selvagem. O Governo do Rio tem toda a cúpula do poder político dos últimos 20 anos envolvida em gigantesco esquema de corrupção em conluio com quadrilhas de negócios privados. Pela dependência dos royalties do petróleo e por má gestão, o Estado está em bancarrota, com salários de servidores atrasados, hospitais e escolas funcionando precariamente. A pobreza é visível nas ruas. E o que é pior, numa cidade segredada social, étnica e territorialmente, a violência toma conta da grande periferia urbana, em uma verdadeira guerra civil não declarada entre policiais militares contra bandos de traficantes. Em tais circunstâncias, é possível para pensar como fazer outro mundo? Ou nosso problema mais urgente é como abrir trincheiras de resistência para impedir que este estado de coisas não seja já a instauração da barbárie pura e simples.
Enfim, talvez o que posso sugerir a partir daqui para contribuir no sentido de forjar sujeitos coletivos para fazer outro mundo é enfrentar desde aqui e agora a fragmentação e fragilidade de nossas resistências, mas nos colocando a questão de fundo: será que o tamanho de nosso sonho é apenas restaurar o que foi o Rio e o Brasil nas últimas duas décadas? Ou a adversidade nos deve levar a pensar nos erros estratégicos que cometemos e na falta de ousadia de nossos sonhos para levar o Brasil no caminho de uma real transição para outro mundo? Que Brasil, afinal, o mundo precisa? Esta questão é para nós, cidadania brasileira, para além de veleidades nacionalistas que internalizam até hoje a colonização (a conquista colonial da Amazônia ainda está em curso).
Estou trazendo estas questões pois acredito que elas podem ajudar na reflexão coletiva do GTI e, sobretudo, porque elas são estratégicas para nós mesmos. Penso que o problema a enfrentar não é de ordem organizacional para construir movimentos capazes de se unir ou formar coalizões para lutar por outros mundos. Na minha análise, os movimentos sociais já fazem muito bem o que podem fazer: construir-se como sujeitos coletivos, com identidade, valores e visões comuns, com formas de se organizar, demonstrando capacidade e muita criatividade nas lutas por suas pautas e agendas de base.
O que nos falta, do local ao mundial, é uma disputa cultural e ideológica de hegemonia no sentido como Antônio Gramsci a define: processo de disputa no seio das sociedades civis, no espaço público, de concepções e visões, de modos de ser e viver como coletividade humana num planeta maravilhoso, mas finito. Trata-se de disputa de valores e princípios contra a xenofobia e racismo, intolerância e ódio, de direitos de liberdade e igualdade como condições de cidadania viva e de democracia, contra privilégios, individualismo, colonialismo e racismo, nacionalismo e liberdade do mercado. Trata-se, ainda, de enfrentar a mercantilização sem limites e defender a centralidade dos comuns para a vida. Precisamos de cidades para a cidadania e não para carros. O que é riqueza real, que atende necessidades e o bem estar coletivo? Enfrentar a “produção destrutiva” como o petróleo, os plásticos, a indústria de armas, a publicidade. Precisamos mais do que alertam sobre mudanças climáticas, pois sua causa é a colonização do bem comum atmosfera por este capitalismo privatizador de tudo.
Não vou pautar todos os pontos que precisam sair da esfera técnica em que estão confinados e virar argumentos compreensíveis de modo geral, às grandes maiorias. A tarefa é criar uma “atmosfera” que dê outro sentido, um sentido oposto ao que aos fascistas, fundamentalistas e nacionalistas propagam hoje e que, lamentavelmente, estão conseguindo seguidores. Basta ver o que é que cresce no seio das sociedades civis nos diferentes quadrantes do Planeta.
Sublinho aqui que o fundamental é disputar corações e mentes no espaço público, na mídia, nas redes sociais, nas expressões culturais e religiosas, na academia, no clube, no bar, nas redes e fóruns da sociedade civil. Precisamos, sim, colar nos movimentos sociais e escutá-los, aprender com eles, extrair daí inspiração. Esta é uma tarefa de elaboração política e cultural, de criação de movimentos de ideias que aderem na realidade. Estamos sendo derrotados por um modo de pensar que não vê alternativas.
Outro mundo é possível fazer, mas precisamos sonhar e acreditar, apesar das circunstâncias mais ou menos difíceis que enfrentamos. Precisamos de algo como uma onda cultural gigante que seja capaz de dar sentido libertário, emancipatório e humanista, de igualdade na diferença, de bem viver contido nas muitas emergências e insurgências, grandes e pequenas, desiguais, contraditórias mas legítimas, pipocando pelo mundo. Um tal imaginário mobilizador só poderá ser construído de forma cooperativa no respeito às diversidades e múltiplas lutas em que localmente estamos envolvidos. Não se trata de unir artificialmente, mas de explorar novas filosofias de vida como teias que nos unem na busca do bem comum maior e, sem medo, enfrentar a disputa que tal modo de pensar provoca entre os poderosos sujeitos coletivos que se consideram donos de tudo, inclusive da história.
Rio de Janeiro, 28/11/17

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