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CIDADANIA E POLÍTICA: Estamos diante de algo novo?

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Sem dúvida, olhar para o Planalto do poder é desalentador para qualquer um. O embate é real, mas os protagonistas, especialmente no Congresso, seus presidentes e a pletora de partidos aí existentes são mais do que lamentáveis. O pior é que nosso voto produziu isto, ou melhor, aceitou e legitimou tal forma de escolha e tais personagens que nos representam. Onde erramos? Por que erramos tanto? Será que isto é o espelho da sociedade ou o próprio espelho foi “traficado” de forma a produzir representações que nos negam? Prefiro ficar com esta última hipótese. Mas isto nem consola, pois constatar que a política foi distorcida pelo financiamento empresarial dos processos eleitorais – um fato radicalmente antidemocrático – não isenta nossa responsabilidade cidadã no ato de votar. Afinal, elegemos os bandos que dominam o Congresso. E agora penamos com eles!

Temos, sim, a celebrar uma certa institucionalidade que a Constituição de 1988 referendou, hoje muito tensionada pela crise. Estamos mergulhados numa espécie de estresse institucional, com o Executivo quase sem iniciativa, um tanto encurralado diante de denúncias de crimes no mínimo controversos. Neste quadro, o Judiciário avança sobre o terreno específico da política com certo protagonismo, quando deveria ser passivo, só agindo como árbitro acionado pelas partes em disputa. O Congresso tem muito pouco de expressão da cidadania brasileira, pela fidelidade que demonstra a interesses corporativos privados, fisiológicos e patrimonialistas. Pode sair algo de tudo isto maior do que uma mera acomodação conciliatória, que protela a urgência de um novo salto democrático para que realizemos o nosso potencial como sociedade empurrada pela cidadania vibrante, reconhecidamente emergente mundo afora?

Em meio ao turbilhão desta crise política e econômica totalmente errática, de cacofonia institucional, ainda sem solução visível, onde os desencontros preponderam sobre encontros, a única coisa nova que constato e até comemoro é a revitalização do debate político na sociedade civil. Escrevo em meio a uma angústia pessoal por tal constatação, enquanto ativista e analista. Afinal, parece que estamos diante de algo muito novo, em gestação apenas, mas poderoso em sua capacidade de anunciar possíveis mudanças profundas. Será um trauma maior do que a crise atual se tal processo nascente acabar abortando. Mas nascendo e crescendo é como o anúncio de uma grande renovação democrática entre nós, de modo que ainda não dá para saber como. O fantástico é que algumas semanas antes era impossível de prever isto. Houve, sim, grandes manifestações mas elas, de um lado e outro, tem sido marcadas pela impasse institucional: a favor ou contra o impeachment. Nada propositivo parecia sair daí e, por isto, a própria crise amplificada, pois o bem mais escasso era de ideias. Mas, no embate, algo novo das contradições de fundo entre nós apareceu e começøu a tomar corpo. Isto extrapola aquela marola institucional do Planalto e o resultado mais imediato que o processo de impeachment ou não pode dar. Vejo nascendo algo, produzido pela cidadania, que foge ao controle dos espaços institucionais. Trata-se de um despertar ruidoso e intenso da cidadania para a política, disposta a disputar algo para além deste imediato caótico.

O que me assusta e, ao mesmo tempo, entusiasma é o possível renascer do protagonismo da cidadania na política. Afinal, o descrédito na política como é estruturada e praticada é um fato, por mais perturbador que isto seja, pois deixa sem saída legítima. Mas, olhando bem, o descrédito no institucional é algo comum aos que propõem o impeachment e os que são contra, pois no fundo a maioria busca algo mais do que isto que está aí, no imediato. Não que isto fosse previsível, definitivamente não. É a disputa que está na rua e invadiu tudo que está criando algo novo. Foi como se a crise, de forma até surpreendente, tivesse disparado um alarme e acordasse a cidadania para o que ela tem de mais essencial: a exposição pública de ideias e sentimentos, de desejos e sonhos, a busca frenética por informações e o seu compartilhamento nas redes para criar inteligência e compreensão coletiva e, ao mesmo tempo, compartilhada, o assumir-se abertamente defendendo posições. Tudo isto, no meu modo de ver, é uma espécie de reivindicação do direito de ser cidadania naquilo que é mais essencial: ser força instituinte e constituinte.

Isto já tem um formato definido? Não! Tem direção ou aponta a um imaginário mobilizador? Não, mas pode ser o berço de novas ideias e ousadias no plano de projetos da sociedade que queremos construir. Estamos praticando cidadania política 24 horas por dia. O debate sobre o país e o que fazer está no convívio familiar, do casal, dele com filhas e filhos, com avôs e avós e quem mais estiver por aí. Ele predomina nas relações afetivas fora do lar, nas festas com amigos. O trabalho se realiza debatendo o Brasil com quem está ao nosso lado. Vamos ao bar e à praia e o debate continua. Viajar em meio transporte coletivo, táxi ou uber… o papo não arrefece e a gente não tem como se esquivar. A feira e o supermercado, a farmácia e a padaria, tudo está invadido pela saudável política. Em síntese, a rua está tomada pela política.

Mas surgiram junto enormes contradições e desafios, longe do embate institucional que parece determinar a crise. Afinal, ressurgiu abertamente um pensamento autoritário entre nós. O bom é que se expõe, o preocupante é que existe com raízes profundas. Também o racismo perdeu vergonha e ousa questionar conquistas recentes, seja na universidade ou no próprio trabalho das empregadas domésticas. O pior de tudo é a intolerância presente e experimentada no cotidiano. Claro, houve intencionalidade, sobretudo dos grandes meios de comunicação, em fomentar ódios em nome de uma moralidade unidirecional. Mas a intolerância saiu do espaço da livre manifestação e se somou à intolerância a tudo o que é diferente, como o pobre, os e as negras, os de favela e periferias, os que se autoafirmaram e construíram identidades de sem direitos na nossa democracia de pouco mais de 30 anos.

Como força renovadora da democracia, cabe ressaltar aqui o processo contraditório em que a cidadania se reinventa em sua plena diversidade. Um contronto assim, mesmo fugindo a nosso próprio desejos e sonhos, só pode ser bom para a democracia e a cidadania entre nós. É um processo que repõe as coisas no seu lugar e dá à cidadania ativa o protagonismo renovador de instituições, leis e políticas.

Considero este fenômeno novo e recentíssimo uma reinvenção da cidadania e esperança de revitalização do processo democrático. Lembro o que é intrínseco à democracia: um processo institucionalizado de incertezas, de pactos em instabilidade construtiva, de ganhos e perdas, segundo valores e princípios éticos compartidos, mas onde o inovar é condição sine qua non dela mesma, a democracia.

Insisto nisto, pois é fundamental para o pós-turbulência imediata que vivemos. A cidadania começa a dar o ar de seu protagonismo, para além da institucionalidade democrática existente. Qualquer solução institucional pode ser construída, mas nenhuma desconsiderando a cidadania. Sintonizar com a cidadania não se confunde com sintonizar com pesquisas de opinião, sempre captadoras da opinião pública dominante, mas insensíveis para movimentos profundos em curso na sociedade. Qualquer que seja o desejo no atual processo de impeachment, o fato relevante de meu ponto de vista é buscar entender o debate larval e profundo que ocorre na sociedade neste momento. Trata-se de sintonizar e responder ao debate vivo que brota aqui e acolá, no quente, escaldante até, bruto, ainda sem formas e contornos precisos, tanto de ideias como de sua capacidade mobilizadora de vontades. O fundamental – e este é um recado para os poucos políticos responsáveis ainda existentes – é sintonizar com o novo que está em gestação política, longe do Parlamento, do Executivo e do Judiciário, não ecoado na grande mídia: uma renovada cidadania se anunciando.

Rio, 9 de abril de 2016

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