Cândido Grzybowski, sociólogo e ex-diretor do Ibase

Meu objetivo, ao me debruçar sobre as diferentes conjunturas, é participar com o que posso fazer como analista e ativista: desvendar as potencialidades e as contradições das lutas com protagonismo da cidadania, no chão da sociedade civil. Vejo a ação cidadã como força democrática transformadora ecossocial de relações, estruturas e processos, apontando novos horizontes e caminhos a percorrer. Uma tal prioridade analítica não implica em ignorar o mercado/economia, nem o poder/Estado. Pelo contrário, trata-se de olhar prioritariamente a partir das ações da cidadania ou a cidadania em ação, em cada momento, como força instituinte e constituinte da democracia, dentro dos limites econômicos, políticos e culturais existentes.  O que importa, sim, é reconhecer como o domínio real do mercado combinado com o poder estatal determina o nosso viver no dia a dia, em multiplicidade de formas, e contamina os modos de ver e pensar, os nossos valores e crenças, nossos desejos e sonhos, até nosso agir como cidadania. As buscas e as possibilidades de emancipação social e política são a grande questão a ser avaliada nas ações da cidadania.

Por mais frágeis que sejam, as ações da cidadania se expressam sempre como formas coletivas de participação social e política, de luta enfim, carregadas de imaginários mobilizadores, para a promoção e defesa de seus direitos.  Isto pode ou não ser reconhecido pelo poder estatal, menos ainda pelo mercado. Aliás, ser reconhecida como identidade e voz coletiva legítima é a primeira e fundamental conquista como forma de expressão social e política. Um processo assim se dá de múltiplas formas, devido a diversidade de modos de ser, viver e pensar, em cada momento histórico. Ou seja, sempre precisamos estar atentos à diversidade de identidades de vozes. É isto se dá em diferentes situações e processos concretos. Por isto, prefiro pesquisar, analisar e debater conjunturas sempre buscando as “cidadanias em ação”, sem ignorar a potência de sua diversidade e das coalizões cidadãs que se formam a partir daí.

Sei que é questionável, mas adoto um modo de ver e analisar a diversidade das cidadanias para romper com o domínio da conceituação abstrata, política e jurídica, contida na definição legal de cada país, a partir do poder estatal. Ter cidadania é, acima de tudo, se sentir ser humano titular de direitos iguais de liberdade e participação para lutar coletivamente por eles. Em termos teóricos e metodológicos, classifico os direitos em três grupos: direitos civis e políticos, direitos aos comuns, direitos econômicos, sociais e culturais. Direito que não é igual para todas e todos é privilégio e forma de dominação, não é direito. Por isto, a luta por direitos de cidadania é uma luta que nunca acaba, uma potência transformadora, apesar de poder celebrar conquistas simbólicas, sempre provisórias, em momentos históricos dados. Assim como direitos podem ser perdidos e reduzidos, direitos podem ser ganhos e ampliados.

Por que tudo isto? Primeiro, democracia nunca é algo acabado, um modo definitivo de viver coletivamente, mas uma condição e um processo – extremamente variável de uma situação a outra e seus contextos históricos específicos – em que a luta social por mais direitos é sempre possível e legítima. Mais, de força potencialmente destrutiva, a luta política vira força viva de construção democrática e transformação ecossocial. A intensidade da participação cidadã é que qualifica a democracia e esta se revela no modo de agir do Estado, nos limites e regulações sobre a economia. Mas, ao mesmo tempo, a democracia brota e se alimenta no seio da sociedade civil, não no Estado e nem no mercado.

Isto é extremamente complexo na prática. Pois se a participação cidadã é a força qualificadora e transformadora, o poder estatal e as forças ocultas do mercado/economia podem e buscam de fato limitar e deslegitimar as cidadanias e suas lutas. Nisto se configuram as conjunturas.

Não pude evitar toda esta minha reflexão pois, num certo sentido, o voto periódico da cidadania é uma conquista e seu exercício é fundamental, escolhendo e assim delegando poderes para governantes e representantes, validando uns e destituindo outros. O poder votar é uma espécie de consenso sobre o mínimo para ser ou não ser uma democracia em termos políticos. Sem dúvida poder votar é uma qualidade de participação política cidadã, sine qua non, que distingue regimes políticos democráticos de outros. Mas é uma participação frágil, que delega poderes aos eleitos através de seus partidos, que facilmente podem dar as costas para a cidadania no exercício de seu mandato. Por mais necessárias que sejam, as eleições periódicas não bastam para dar intensidade e capacidade transformadora à “situação” democrática conquistada.

Voltando ao que mais me preocupa na conjuntura eleitoral em que nosso voto cidadão é chamado a decidir, em outubro deste ano, sobre a difícil situação em que estamos emaranhados no Brasil. Sei que vale o voto posto na urna eletrônica, mesmo se as forças que sustentam a monstruosidade do governo e a cumplicidade do Congresso queiram questionar de antemão o seu resultado. Mas independentemente desta ameaça, o pior é a coalizão democrática ampla em torno a Lula e o PT não ganhar. Este é um fato político que só a cidadania participando é que poderá garantir a vitória.

Diante de tal quadro é que me volto, em particular, para as cidadania ativas que demandam mais direitos ecossociais e a reversão das políticas pró mercado e destruidoras de conquistas de direitos, ocorrida com os governos pós destituição de Dilma Rousseff, pelo golpe político via Congresso Nacional. Em síntese, a questão é se sentir legitimado e decisivo em participar, desde aqui e agora, no processo eleitoral, para além do enquadramento partidário e suas propostas e assim poder continuar lutando, com mais força e impacto, como cidadanias ativas em sua diversidade na conformação do governo e do Congresso. Mas será que isto vai acontecer com a força necessária e será reconhecido? O tempo é curto, mas temos que acreditar e sonhar que, sim, é possível. Cidadanias em outros países da América Latina demonstraram recentemente e nós também, num passado não tão distante.

O momento exige a forte presença das diversas cidadanias nas ruas e nos debates,  assim como nas urnas em outubro. A decisão do amanhã da democracia está em nossas mãos.

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