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A importância e a contemporaneidade da Conferência de Durban

Há 19 anos, em setembro de 2001, 173 países e 4 mil ONGs participavam da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU, em Durban, na África do Sul. Ao final do encontro, dois documentos influenciariam a adoção de políticas públicas de combate ao racismo em todo o mundo: a Declaração de Durban e o Programa de Ação. O Brasil foi um dos países presentes e é signatário de suas resoluções.

A participação de ONGs brasileiras e das ativistas Edna Roland, como relatora da Conferência, e Dulce Pereira, na Presidência da Fundação Cultural Palmares, deu ao país um papel de destaque e ajudou em conquistas como a utilização do critério de autodeclaração de cor/raça nos censos demográficos realizados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e nas primeiras políticas afirmativas para inclusão de negros(as) no ensino superior. Outro ganho foi a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, promulgado em 2010 pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, mas que teve sua origem nos debates pós-Durban.

Na entrevista a seguir, a historiadora Wania Sant’Anna e a gestora pública Regina Adami avaliam os avanços e retrocessos ao longo dessas quase duas décadas de compromisso oficial de combate ao racismo por parte do Estado Brasileiro. Wania Sant’Anna e Regina Adami estiveram presentes na Conferência de Durban e atualmente integram a rede Coalizão Negra por Direitos. Wania Sant’Anna também é vice-presidenta do Conselho Curador do Ibase e representante do Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro.

Regina Adami e Wania Sant’Anna falam sobre o Conferência de Durban

Como foi a participação da sociedade civil na Conferência de Durban?

Wania Sant’Anna – É importante lembrar que em 2001 o governo brasileiro realmente apoiou a participação da sociedade civil e principalmente das mulheres negras na Conferência de Durban. Foram mais de 400 participantes na delegação e todas as ONGs foram credenciadas. Foi um gesto importante e que garantiu acesso aos fóruns e debates de forma ampla.

Pessoalmente, foi um grande prazer ajudar a construir cada parágrafo dos documentos. Acredito que essa intervenção tão profunda do movimento negro brasileiro na Conferência só foi possível porque tivemos, em âmbito nacional e anterior ao encontro, inúmeros encontros de discussão temática, com elaboração de propostas e argumentação conceitual.  Discussões sobre saúde, educação, violência, trabalho, representação política fizeram parte de um processo inegavelmente participativo e que nos prepararam adequadamente para a Conferência. Vale também relembrar que tivemos apoio para ir à Conferência Regional das Américas, que foi realizada em Santiago, em dezembro de 2000, como parte do processo preparatório do encontro mundial.

Mas a participação das mulheres negras foi um grande diferencial.

Wania Sant’Anna – Especificamente sobre as mulheres negras já vivíamos ali uma ascensão certeira do número de coletivos e organizações por nós criadas e lideradas. Outro fato inquestionável do ativismo das mulheres negras é que, mesmo antes da Conferência de Durban, já havia a nossa presença e a marca do nosso pensamento em outras conferências do chamado Ciclo Social da ONU, quando temas como meio ambiente, alimentação e direitos reprodutivos e sexuais foram discutidos. As mulheres negras participaram desses momentos, levaram seu acúmulo e se apropriaram dessa metodologia da ONU.

Em que medida a conjuntura política do país ajudou nesse processo?

Regina Adami – É importante lembrar que essa conferência sobre racismo estava inicialmente prevista para acontecer no Brasil, mas o governo de Fernando Henrique Cardoso abriu mão. Era a época de todo aquele levante de manifestações sobre os 500 anos do Brasil e o governo temeu, provavelmente, por uma ampliação nas reivindicações. A partir daí, surge um novo comitê impulsor e se dá a escolha de Durban, na África do Sul.

Na conferência preparatória do Chile, em 2000, também gostaria de lembrar da importância do surgimento da Alianza, uma organização que reuniu movimentos negros de todas as Américas.  Tudo isso fez parte da construção da agenda que levamos para a África do Sul. O desafio era retornar de Durban, com sua Declaração e Plano de Ação, e conseguir emplacar no Brasil políticas públicas de outra qualidade. No plano mundial, o desafio foi não deixar que os atentados contra o World Trade Center, nos Estados Unidos, que aconteceram dias após o final da conferência, apagassem ou diminuíssem o patamar das discussões.

Qual a análise atual dos documentos como Declaração e Programa de Ação?

Regina Adami – A Conferência de Durban pode ser vista como um grande tratado civilizatório de inclusão de povos e da diversidade mundial rumo à equidade. Mas dezenove anos depois, lendo os documentos produzidos naquela época, a sensação que tenho é que demos passos para trás. Precisamos resgatar o espírito que nos fez chegar e gerar tanto acúmulo e tantas propostas inovadoras.

Wania Sant’Anna – Destaco também a importância dos documentos regionais e vou enumerar as contribuições que conseguimos levar para a conferência mundial. Por exemplo, foi nossa recomendação a criação de mecanismos no âmbito de Estado, como Secretarias, dedicados ao enfrentamento do racismo e promoção de direitos para a população negra. Outro ponto que levamos foi a elaboração de planos e programas específicos de combate à discriminação racial, propiciando o próprio monitoramento das recomendações de Durban. O incentivo à geração de dados estatísticos para gerar políticas públicas mais adequadas foi outro destaque da nossa atuação. Muitos países não tinham esse debate.

Os próprios temas que deveriam ser discutidos na conferência mundial foram discutidos e acordados regionalmente. Saúde, educação, moradia, sistema de justiça, migrantes e a relação entre pobreza e racismo foram nossa agenda acordada regionalmente. A memória e a verdade sobre a história da escravidão foi um dos pontos de tensão que também levamos; até que ponto a humanidade estava disposta a reconhecer a escravidão como crime?

Por tudo isso, considero que esses documentos são tão contemporâneos. Até então, não tínhamos orientações globais para enfrentar racismo, discriminação, xenofobia e formas correlatas de intolerância. O que precisamos fazer é usá-los para promover os direitos humanos dessa população que saiu de África sob o regime de escravidão.

Algo mais sobre o Programa de Ação?

Regina Adami – Destaco o fato de, além dos afrodescendentes, os africanos, povos de origem asiática, indígenas, imigrantes, refugiados, solicitantes de asilo, repatriados, vítimas de intolerância religiosa, mulheres, meninas e ciganos também serem potencialmente considerados vítimas de racismo, xenofobia, discriminação e intolerância correlata. Reconhecer essa dimensão do racismo era algo inédito e que se torna fundamental para o mundo em que vivemos hoje.

E o que mais ganhou repercussão no Brasil?

Regina Adami – No Brasil, o discurso das ações afirmativas e a criação de cotas foi o que gerou grande repercussão, junto com o reconhecimento de que são as mulheres e meninas negras as maiores vítimas do racismo, da violência sexual e outras formas de opressão. O Movimento de Mulheres Negras dá um grande salto no país a partir das considerações de Durban.

Também ressalto a questão da legislação e do ordenamento jurídico, que instou o governo a criar leis específicas para combater todas as formas de racismo, discriminação e xenofobia. Ainda que tivéssemos a Constituição Cidadã, em 1988, e a Lei Caó, em 1989, a ampliação do arcabouço jurídico brasileiro contra o racismo, sem dúvida, se dá depois de Durban.

Wania Sant’Anna – Há outros momentos que precisam ser vistos à luz desse Programa de Ação também, como a criação da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), em 2003, e o Estatuto da Igualdade Racial, em 2010 – dois tipos de mecanismos previstos no documento.  Foi o caminho que percorremos para conseguir as políticas de ação afirmativa. Para entender essa lógica, é preciso saber que foi a Declaração da Conferência de Durban que nos deu materialidade para afirmar que existe sim como fazer uma discriminação positiva. Trata-se de um documento oficial da ONU, assinado pelo governo brasileiro. Se existe o compromisso, existe uma maneira de cobrar.

E o que falta repercutir e gerar resultados?

Regina Adami – A questão da reparação histórica, sem dúvida. Essa é uma discussão que precisa acontecer mais substancialmente; não se pode oprimir por tanto tempo uma população e isso dar em nada. O que a Conaq fez agora é um exemplo de como podemos agir; a instituição recorreu à Defensoria Pública da União para garantir acesso a cestas básicas e atendimento médico durante a pandemia.

A forma como estamos questionando os representantes do governo brasileira pelo desrespeito aos direitos humanos, por violações, racismo e genocídio está intimamente ligada ao ordenamento jurídico e aos mecanismos internacionais conquistados na Conferência de Durban.

Wania Sant’Anna – Existe toda uma pauta de reparação, que vai além de ações afirmativas, que precisa muito ser retomada. Enquanto indicadores de saúde e o sistema de justiça, por exemplo, apontarem para as diferenças no tratamento e no encarceramento da população negra, os documentos de Durban continuam atuais e sendo úteis a nossa ação contra o racismo e a discriminação. Os avanços concretos das ações afirmativas estão apenas no ensino superior, até o momento. Precisamos mover tudo o mais.

E quais seriam os grandes retrocessos nesse momento?

Wania Sant’Anna – Em termos de sociedade brasileira, a grande vergonha é esse aumento da intolerância religiosa, sobretudo pela omissão das autoridades. As denúncias de ataques a casas de umbanda e candomblé param no boletim de ocorrência das delegacias e não há qualquer investigação. Isso é extremamente grave. A demonização das religiões de matriz africana é sinônimo da discriminação da identidade negra e nossa ancestralidade. É um tipo de crime e desrespeito que passa pela nossa Constituição e por todos os acordos internacionais.

Outro aspecto inaceitável é o número de jovens negros assassinados todos os anos, algo em torno de 30 mil. Há também a criminalização da juventude negra e abissal diferença no mercado de trabalho, com a maioria da população negra vivendo na informalidade e sem direitos previdenciários.

E como se nada disso fosse suficiente, sabemos que 2/3 dos pobres brasileiros são negros. Como dizer que o princípio da não-discriminação e de atenção às nossas necessidades são atendidas?  As políticas de assistência social não estão devidamente focalizadas em quem realmente precisa. Assim como afirmamos há 19 anos, o racismo continua sendo um fator preponderante para colocar as pessoas negras em situação de pobreza.

E como o atual governo interfere nessa luta antirracista?

Regina Adami – Até o ano de 2016, ainda que com algumas divergências, lidávamos com pessoas que sempre demonstraram apreço pelo Estado Democrático de Direito e pelos Direitos Humanos. No momento, não vejo nos nossos representantes eleitos qualquer atenção ou respeito a qualquer direito de cidadania ou princípios de civilidade. Mas não vejo que houve enganação por parte de quem se elegeu; acredito que a maioria realmente votou por esse tipo de sociedade. Na minha cidade, Brasília, 72% votaram no atual presidente, que sempre deixou explícito quais seriam seus compromissos – o que demonstra uma sociedade alinhada ao que prega o governo.

Wania Sant’Anna – Para nós, ativistas, nada disso surpreende. Sabemos que as condições históricas conservadoras e excludentes estavam dadas. A criminalização da política, dos movimentos sociais e da pauta dos direitos humanos contribuiu enormemente para o quadro retrógrado que temos atualmente. Quem é negro e luta contra o racismo, sempre soube para onde estaria apontada essa “arminha na mão”.

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