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Favelas – uma condição urbana de caráter nacional

Por Athayde Motta, antropólogo e diretor do Ibase; e

Rita Corrêa Brandão, especialista em indicadores sociais e diretora do Ibase

 

Na segunda metade do século 20, o Brasil se tornou um país urbano, pois mais de 50% de sua população passou a residir em cidades. Em 1970, 55,9% da população já vivia nelas. Em 2010, o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que a população urbana brasileira chegava a 84,35%, ou seja, oito entre cada dez habitantes do Brasil residiam em cidades[1]. Até 2050, a população brasileira que vive em centros urbanos deve chegar a 93,6%, de acordo com projeções da Organização das Nações Unidas (ONU).

Em termos territoriais, do fim da década de 1980 até 2022, as áreas urbanizadas no Brasil dobraram de tamanho[2], passando de 2,1 milhões de hectares para 4,1 milhões de hectares, com destaque para o crescimento das favelas.

O Censo Demográfico de 2010 já apontava um total de 6.329 aglomerados subnormais[3] (nome atribuído a favelas, periferias e espaços informais de ocupação) com 3,2 milhões de casas em 323 cidades. De acordo com o IBGE, são formas de ocupação irregular de terrenos públicos ou privados, caracterizadas por um padrão urbanístico também irregular, com carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas que apresentam restrições à ocupação. As populações dessas comunidades vivem sob condições socioeconômicas, de saneamento e de moradias precárias (NOVAES, 2020).

Complexo do Alemão, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Foto Arquivo Ibase

Os dados estimados para o ano de 2019 informam que o número de aglomerados subnormais mais que dobrou desde o último censo, chegando a um número de 13.151 no país, com 5,1 milhões de casas, distribuídos por 734 municípios em todos os estados do Brasil e no Distrito Federal.

Em termos populacionais, existem, no Brasil, aproximadamente, 13,6 milhões de pessoas morando em favelas[4] localizadas, sobretudo, nas capitais e regiões metropolitanas do país. A favela, portanto, é uma condição urbana de caráter nacional.

Em percentuais, a população residente em favelas está distribuída da seguinte maneira: a Região Norte possui 6% de pessoas vivendo em favelas, sendo que os estados do Pará, do Amapá e do Amazonas possuem percentuais de 17%, 16% e 11%, respectivamente. Na Região Nordeste, há 6%, sendo que o estado de Pernambuco tem 10%. O Centro-Oeste é a região do país com menor percentual de pessoas vivendo em favelas, com apenas 1%, seguido pela Região Sul, que tem 2%. No Sudeste, temos 7% da população em favelas, com destaque para o Rio de Janeiro, que é o único estado da região com mais de 10% vivendo em favelas (13%).

Com relação à composição em termos raciais e de gênero, 67% das pessoas que vivem em favelas são negras, 12% a mais do que a composição total de brasileiros e brasileiras, na qual o percentual é de 55%. Com relação ao gênero, 6,3 milhões de mulheres brasileiras vivem em favelas e 69% delas são negras. Portanto, é legítimo afirmar que favelas são territórios essencialmente negros onde prevalece a presença de mulheres negras.

Serviços básicos e garantia de direitos

Quando analisamos dados sobre o acesso à infraestrutura urbana no país, vemos que cerca de 35 milhões de pessoas – o que corresponde a mais de 16% da população brasileira – não têm acesso à água tratada. Cem milhões de pessoas, quase metade da população do Brasil (47%), vivem ainda sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário (BRASIL, 2019). Sabemos que boa parte desses dados diz respeito às favelas e periferias, onde a garantia plena de direitos de cidadania não é efetivada, não correspondendo aos padrões observados nos setores “formais” da cidade. O saneamento básico, como os demais direitos assegurados em nossa Constituição, deve ser realizado a partir do princípio da universalização e da integralidade de acesso ao serviço como direito de cidadania, o que, via de regra, não ocorre nas favelas.

A Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2010, reconheceu o acesso à água potável e segura e ao saneamento básico como direitos essenciais para o gozo pleno da vida e de todos os demais direitos humanos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2010). Além de constar da Nova Agenda Urbana, a garantia de água potável e saneamento para todos é a sexta meta dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), prevista para ser cumprida pelos países signatários, incluindo o Brasil, até 2030.

O acesso à água e ao saneamento básico são decorrentes diretos do princípio da dignidade da pessoa humana, assim, é essencial que sejam garantidos a todas as pessoas, sem distinção.

A produção do espaço urbano no Brasil caminha intimamente ligada a processos de liberalização do mercado de terras e de moradia. A distribuição da população nos diversos territórios das cidades tem, dentre seus impulsionadores centrais, os preços imobiliários de cada local em determinado momento, tendo como consequência o reforço das desigualdades sociais na organização do espaço urbano e a persistência de espaços de exclusão.

A organização da dinâmica social e o planejamento territorial respondem a lógica do valor dos espaços e das populações que neles podem habitar. Apresentam-se como respostas às expectativas socialmente construídas e explícitas na expansão prioritária e garantidora de direitos consolidados em infraestrutura urbana de melhor qualidade nas áreas centrais e mais ricas das cidades, assim como nas implantações tardias, pontuais e descontinuadas nas áreas mais empobrecidas e periféricas.

A pandemia do coronavírus ajudou a evidenciar as mazelas causadas por essa desigual produção do espaço urbano e o quanto isso deve implicar toda a sociedade. A falta de saneamento básico, de água e de moradia digna, essenciais no combate ao contágio e ao controle da pandemia, evidenciaram as desigualdades de acesso a serviços básicos e essenciais que asseguram o direito à vida e à saúde da população mais vulnerável, o que diz respeito a todos e todas nós enquanto sociedade.

Cidades mais justas e igualitárias, onde todos e todas têm direitos básicos garantidos e nenhuma pessoa tem seu direito humano violado, deve ser uma meta perseguida pelos governantes e pela sociedade para assegurar sociedades mais fortalecidas social, ambiental e economicamente.

Favela é cidade!

Para romper essa lógica de exclusão na cidade, precisamos ser capazes de promover efeitos de reestruturação no espaço urbano. Os diversos atores envolvidos devem ter a oportunidade de discutir e interferir em ações concretas de soluções para um conjunto de problemas sociais, culturais e ambientais vivenciados, principalmente, pelos espaços de favelas e periferias.

Se a história recente do urbanismo e do planejamento urbano no Brasil revela que a cidade foi tratada como lugar da produção de desigualdades sociais (RIBEIRO; SANTOS JUNIOR, 2003) e exclusão, consolidar novas práticas requer a ampliação dos espaços de diálogo e decisão a partir de uma nova dinâmica de interação entre os atores envolvidos. A favela deve ser alçada a uma questão nacional, com o investimento de recursos e o escopo de uma política pública federal.

O controle social é um dos pilares do estado democrático de direito que precisamos garantir. Trata-se do conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade não somente informações, mas a participação nos processos de formulação, de planejamento e de avaliação de políticas públicas e deve ser recolocado na cena política da discussão das cidades como um princípio fundamental.

Discutir a cidade é discutir planejamento e gestão de forma integrada. Cabem às gestões municipais, o controle e o ordenamento do uso e da ocupação do solo. O abastecimento de água e esgotamento sanitário são, em geral, tarefas de companhias estaduais. No entanto, é fundamental haver um esforço conjunto entre as prefeituras, os governos estaduais e o governo federal para prover não somente saneamento e habitação, mas também transporte, educação, saúde, trabalho e segurança pública de forma a gerar o desenvolvimento integrado das cidades. Territórios de favelas e periferias, portanto, precisam ser incluídos em processos de planejamento e de gestão integrados.

Para os projetos de cidades pós-pandemia, precisamos garantir o financiamento contínuo para as políticas urbanas com recursos de diversas fontes, assegurar a participação popular nos processos decisórios e conquistar o compromisso irremediável de governantes com o efetivo acesso aos direitos humanos relativos a uma vida com dignidade e cidadania nos territórios de favelas e periferias.

Leia aqui o dossiê Favela é Cidade, lançado pelo Ibase em junho de 2022.

 

 

Bibliografia

ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 20[F1] 00.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2018. Brasília, DF: SNS/MDR, 2019. Disponível em: http://www.snis.gov.br/diagnostico-anual-agua-e-esgotos/diagnostico-dos-servicos-de-agua-e-esgotos-2018. Acesso em: 15 jun. 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/. Acesso em: 19 maio 2022.

NOVAES, Maikon Roberth de (coord.). Aglomerados subnormais 2019: classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à COVID-19. Nota técnica. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101717. Acesso em: 19 maio 2022.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral. Resolução A/RES/64/292, de 28 de julho de 2010. O direito humano à água e ao saneamento. [S. l.]: ONU, 2010. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N09/479/35/PDF/N0947935.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2022.

Projeto MapBiomas. Mapeamento anual de cobertura e uso da terra do Brasil – Coleção 6 (1985-2020). São Paulo: MapBiomas, 2021. Disponível em: https://mapbiomas-br-site.s3.amazonaws.com/MapBiomas_Infra_Urbana_Novembro_2021_04112021_OK.pdf. Acesso em: 15 jun. 2022.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Democracia e segregação urbana: reflexões sobre a relação entre cidade e cidadania na sociedade brasileira. EURE Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales, Santiago, v. 29, n. 88, p. 79-95, dic. 2003. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612003008800004&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 19 maio 2022.

SOUZA JR., Carlos M. et al. Reconstructing three decades of land use and land cover changes in brazilian biomes with landsat archive and earth engine. Remote Sensing, [s. l.], v. 12, n. 17, 2020. Disponível em: https://www.mdpi.com/2072-4292/12/17/2735/htm. Acesso em: 19 maio 2022.


[1] De acordo com o Censo Brasileiro de 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2012), 67 municípios tinham 100% de sua população vivendo em situação urbana e 775, com mais de 90% de área urbana.

[2] Dados da pesquisa realizada pelo Projeto MapBiomas – Mapeamento anual do uso e cobertura da terra no Brasil, 2021. Ver também Souza JR. et al, 2020.

[3] Aglomerados subnormais são comumente chamados por várias denominações de acordo com a região do Brasil, como favela, invasão, periferias, grota, baixada, comunidade, mocambo, palafita, loteamento, ressaca, vila, entre outros (NOVAES, 2020).

[4] Os dados são do estudo publicado pelo Instituto Data Favela (2021), em parceria com o Instituto Locomotiva – Pesquisa e Estratégia e a Central Única das Favelas (Cufa). A pesquisa foi feita com 2.087 pessoas maiores de 16 anos, em 76 favelas de todas as unidades da federação, no período de 9 a 11 de fevereiro de 2021. A margem de erro é de 2,1 pontos percentuais.


 

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