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Ética do cuidado no uso de nossa capacidade científica e técnica

Cuidado e compartilhamento para vida sustentável
IV – Ética do cuidado no uso de nossa capacidade científica e técnica
Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase
                                                                                                                                     
O extraordinário desenvolvimento científico e sua aplicação prática na forma de tecnologia transformaram radicalmente as relações entre nós mesmos e aquelas de troca com a natureza, condição da vida. Não é minha intenção focar no como se deu tal desenvolvimento, mas sim na nova ética que ele impõe.
 
A questão é que nós, seres humanos, pela ciência e pela tecnologia, nos tornamos uma força capaz de concorrer com as forças naturais, transformá-las e até implodir a natureza. Somos hoje uma força ecossocial com poder sobre a integridade do Planeta. É a partir de tal reconhecimento que devemos pensar nossa responsabilidade ética. Como afirma o físico alemão Hans-Peter Dürr, falando da energia atômica: “Com estas transformações de energia, nós atingimos uma dimensão que entra em concorrência com as forças naturais em ação na superfície da nossa Terra. Assim, adquirimos a capacidade de intervir diretamente no jogo delicado das forças que asseguram a estabilidade de nosso meio ambiente natural[1].” Dürr trata das consequências disto para a teoria e a prática científica. O fato histórico essencial é que com o desenvolvimento científico e técnico mudamos nós mesmos, o nosso modo de ser e agir, como sujeitos. Diante de tal fato, para a minha reflexão a respeito, tomo como referência a contribuição de outro alemão, filósofo, Hans Jonas. Ele afirma: “… já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada pelo agir humano também impõe uma modificação na ética”.[2] Como a intervenção técnica humana afeta a crítica vulnerabilidade dos sistemas ecológicos, é necessário pensar uma nova teoria ética sobre a natureza como uma responsabilidade humana. Entre nós, latino-americanos, há uma reflexão avançada e nova a respeito, de pensadores como Alberto Acosta, Pablo Solon e Eduardo Gudynas. Inspirados no “Vivir Bien” da cosmovisão indígena, eles defendem, uma ética dos “direitos da própria natureza”.[3]
 
Na minha avaliação, já avançamos muito na concepção de parâmetros éticos para um novo agir de cuidado, de respeito e de responsabilidade no desenvolvimento e uso de novas tecnologias na relação com a natureza. Sendo uma questão ética para toda a coletividade humana, ela se torna também um princípio que deveria ser referência da nova política e da nova economia. Por exemplo, desde na Conferência da ONU Rio-92, foi claramente adotado o princípio da precaução científica, que limita a adoção de novas tecnologias diante da falta de evidências e consensos no mundo científico sobre impactos na natureza. Ou seja, se admite a responsabilidade humana na questão. No entanto, tal princípio vem sendo sistematicamente desrespeitado pelos governos e pelas empresas. É emblemático o caso dos produtos transgênicos e de uso de agrotóxicos na agricultura, cuja liberação está acima da maioria dos estudos que alertam sobre os grandes riscos de sua utilização, tanto para o meio ambiente, com ameaça real de destruição da biodiversidade, como para a saúde humana. Até aqui os interesses das grandes corporações ligadas ao agronegócio preponderam nas decisões políticas de órgãos reguladores.
 
O problema é que tudo isto ainda fica, como questão, limitado a esferas muito restritas, mesmo na área acadêmica das mais importantes universidades do mundo. A própria ciência deixou de ser uma busca de saber compreensivo e integral, de admiração com a fantástica maravilha da vida e do Planeta e de respeito diante de complexidade. A ciência, neste mundo globalizado dos negócios acima de tudo, se tornou um pesquisar frenético, altamente especializado, segmentado, instrumental, financiado por grandes empresas capitalistas, sempre em busca da descoberta de soluções específicas, de maior produtividade e, portanto, de maior lucro na competição por acumular mais e mais. Lamentavelmente, a tendência dominante no desenvolvimento da ciência não está do lado do cuidado, apesar de sua enorme responsabilidade na questão das tecnologias e seus impactos. Ciência hoje é avaliada pela quantidade de novidades que viram patentes com valor de mercado, em nome dos chamados direitos de propriedade intelectual – melhor seria definir isto como privilégio. O saber científico como bem comum e patrimônio de toda humanidade, gerado sempre pelo compartilhamento entre cientistas, está se tornando privado e fonte de expansão capitalista. A bem da verdade, contra a própria ciência, em última análise.[4]
 
Um exemplo concreto recente sobre esta dominação do interesse econômico privado na indução da ciência e da tecnologia é o enorme esforço científico colaborativo mundial empreendido para entender o zica vírus. Trata-se de buscar a vacina imunizadora ou o melhor remédio de controle de seus impactos na gestação das mães e nos novos bebês, o futuro da própria espécie humana. Uns aprendem com as buscas e até fracassos de outros. Sempre foi assim na ciência. Mas com o produtivismo e mercantilismo que cercam a ciência hoje, quem chegar primeiro à solução terá o direito nada ético de registrar como um direito de propriedade intelectual seu e ao vendê-lo ganhar muito com isto.
 
Também é importante lembrar que o avanço científico e tecnológico de nossa civilização é intrinsecamente ligado ao financiamento público para a guerra, para matar e dominar, não para felicidade humana e o bem viver. E o que dizer de um bem comum como a internet, grande invenção humana, mas mercantilizada e tornada base de grandes negócios privados?  Google, Facebook, Amazon, entre outras, com seus aplicativos vendem a nós mesmos, em última análise, pois se apropriam dos dados que lhes forneceremos ao usar seus chamados “serviços gratuitos”, nesta nova forma de acumulação primitiva da quarta revolução industrial do capitalismo.
 
Diante da ameaçadora mudança climática devido à “colonização” da atmosfera pelas emissões acumuladas de nossa civilização movida a energia fóssil, ao invés de caminharmos para a mudança radical do modo de usar a natureza, estamos sendo bombardeados pelas ideias de economia verde e propostas de geoengenharia. Elas reproduzem e exacerbam a mesma base científica e técnica, as mesmas forças de mercado, portanto, mais negócios e frentes de expansão. Até os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – da Agenda 2030, acordada na Assembleia da ONU de 2015, estão contaminados por tais ideias, sem mudar a lógica das forças de mercado. Uma referência de análise crítica a tudo o que tal caminho representa como ameaça é do ETC Group, do Canadá.
 
Enfim, levantar a questão da ética do nosso agir tecnológico como seres humanos impacta diretamente a civilização produtivista, consumista e mercantilista do capitalismo, exatamente a promotora de um desenvolvimento científico e técnico de domínio total da natureza, desqualificando qualquer consideração sobre responsabilidades, cuidado, limites naturais, integridade de sistemas ecológicos, mudança climática. Estamos ainda longe de conseguir impactar o grande público com tais considerações. É aí que reside a questão de como criar outra narrativa, que valorize a ciência e técnica, mas demande responsabilidade e avaliação de impactos, que exige o cuidado como condição de sustentabilidade ecossocial. Enfim, o cuidado rima como precaução como princípio ético e prático na economia e sua base científica e tecnológica.
 
Resistências, emergências e novas formas de relação com a natureza pipocam no mundo inteiro. O que elas trazem de radical é a demonstração que nova tecnologia supõe nova relação entre nós mesmos e o meio ambiente. Ou seja, não é possível nova tecnologia sem uma perspectiva ecossocial, de mudarmos como nos relacionamos entre nós mesmos junto com a mudança no modo como nos relacionamos para trocar com a natureza, que nos dá as condições de viver. Estamos diante da necessidade de buscar nova ciência e nova tecnologia, mas não independentemente de transformar a organização social, econômica e política que a sustenta.
 
Vista assim a questão, a tarefa pela frente não é só identificar, mapear e divulgar tais experiências como exemplos, para que se multipliquem. Precisamos ir além. Faz-se necessário produzir uma narrativa capaz de disputar hegemonia, como questão ética e como cosmovisão. Para isto é preciso que integremos as experiências de desenvolvimento e uso de novo saber científico e técnico, inspirado no saber, nas vivências e práticas de amplos setores da população, nas cidades e no campo, numa nova referência e em uma nova utopia, para além de resistência concreta indispensável e fundamental. Temos que confrontar a civilização capitalista como modo de produção e de vida com questões éticas, com uma nova visão tanto da economia como da ciência e da técnica, de estilos de vida, de modo de viver em sociedade, cuidando-nos mutuamente e cuidando da integridade da natureza para as novas gerações.
[1]Hans-Peter Dürr. De la Science à l´Étique: Physique moderne et responsabilité scientifique, (Paris: Éditons Albin Michel, 1994),18
[2]Hans Jonas. O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, (Rio de Janeiro: Contraponto/Ed.PUC-Rio, 2006),29
[3]Eduardo Gudynas. Derechos de la Natualeza: Ética biocétrica y políticas ambientales, (Peru: PDTG/RedGE/Cooper Accion/CLAES, 2014)
 
[4] Cândido Grzybowski, Cidadania, controle social das CT&I e Democratização. In: O papel da C, T & I na Redução das Desigualdades Sociais e na Inclusão Social.ed.Coordenação da 4ª  Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, 2010 ),63-80.
 

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