Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Estes últimos tempos foram de muita angústia e estresse político no Brasil. Difícil foi ficar de fora, como se não fosse com a gente. Não só foi algo rápido e impactante em termos de decomposição de verdades e certezas, de revelações de um sistema político profundamente corrompido, como tendeu a nos por em diferentes polos, profundamente separados. E ainda não dá para ver bem onde isto vai dar, quem dos representantes que temos poderá reivindicar alguma legitimidade para ser o governo do Brasil. Por enquanto continuamos nos atolando cada vez mais numa grande crise que, a essas alturas, já depende muito pouco do desfecho do impedimento da presidenta Dilma. Quaisquer das possibilidades legais possíveis só aprofundam a crise de hegemonia, de falta de rumos legítimos, de direções como expressão democrática de sonhos e desejos de amplos setores da sociedade, capazes de agregar e viabilizar propostas de uma nova onda de democratização. Aliás, o mais provável é entrarmos num processo mais ou menos longo de crise larval, de idas e vindas, de desmanche sem reconstrução, de perda de direitos de cidadania conquistados, de desemprego e instabilidade, de uma rápida expansão da miséria e pobreza, com enorme esgarçamento do tecido social. Terreno fértil para que prosperem demagogos e oportunistas, como já temos alguns, que transformam a diferença e a insatisfação com tudo que está aí em intolerância e ódio de uns sobre outros. O fenômeno de Trump, nos EUA, deve nos fazer pensar, assim como outros exemplos de ascensão de direitas fascistas pelo mundo, coisa que está à nossa porta. Quem pensa que o Brasil está livre disso se engana profundamente. O autoritarismo está cravado fundo no nosso DNA como país. A democracia ainda é uma tenra planta, no momento sofrendo por falta de seiva vital dos que defendem seus valores e princípios éticos, a água que vivifica as democracias sempre. Existem, sim, democratas convictos e radicais entre nós, mas estamos encurraladas pela situação brasileira e mundial, pelo capitalismo neoliberal sem pejo, do poder do dinheiro tout court.

Escrevo tudo isto porque a vida segue e não podemos parar, mas o bicho pode nos comer… Estamos de olho em Brasília, naquelas pequenas personagens que tomam a cena no Congresso Nacional e no governo provisório, mais à feição e ao serviço dos que financiaram as suas campanhas, do que da diversa cidadania brasileira. E esquecemo-nos de priorizar o nosso entorno.  Em menos de três meses teremos eleições municipais, uma primeira etapa no calendário político de resistência e reconstrução de outro Brasil. Em sã consciência, quem pode afirmar que está levando a sério as eleições municipais de outubro? Os territórios em que moramos, trabalhamos, vivemos, enfim, como os verdadeiros pilares do refazer a democracia brasileira de baixo para cima, representam a possibilidade de começar desde já a tarefa de construir um novo amanhã. Temos claro, vagas ideias de articulações de bastidores, de tomadas de posição, de figuras que se dizem e se lançam como candidatos a prefeitos e vereadores. Por quem? Por quê? Para que projeto? O que significa a constelação de partidos, no geral de ocasião, atrás deles e delas?

Estou aqui nesse Rio de Janeiro, cidade maquiada para o espetáculo olímpico, mais para turistas e o negócio dos jogos do que para nós, moradoras e moradores daqui. Algumas das obras até encantam e irão marcar o amanhã deste maravilhoso e mal tratado bem comum que é a nossa cidade. Cidade de encantos mil, tanto pelo azul do mar, baía e praias, pelos morros e florestas, como pelo seu jeito de ser, humor e cultura vibrante, do samba, da rap, do funk. Este é seu lado resistente, mesmo nas maiores adversidades.  Hoje discutimos, no cotidiano, mais a violência em ascensão do que as Olimpíadas que acontecerão em menos de um mês, mais o descalabro dos serviços públicos como educação e saúde e o caos que se instalou nos transportes públicos, mesmo com o saudado VLT (novo nome, maquiado, do conhecido bonde!) na área central, as linhas de BRTs e a extensão do grande linhão do metrô. A cidade ficou muito, muito mais difícil! Não dá para esperar solução lá do Planalto. Afinal, vivemos na planície, como lembrava o Betinho. E aqui estamos com um estado na UTI.

Minha outra vivência de cidade, nesta etapa da vida, é Rio Bonito, a 90 km do Rio e parte da Região Metropolitana. A 6 km da cidade, construí com minha companheira um pequeno paraíso de preservação da biodiversidade, a Chácara Iru, onde ainda pratico técnicas de agricultura orgânica, aprendidas desde o berço familiar em Erechim (RS).  Lá está a minha biblioteca dos meus mestres e inspiradores. A cidade de Rio Bonito, pequena, é a décima em número de carros per capita do Brasil! De bonito sobra pouco, pois o riozinho que está no centro é uma verdadeira vala de esgoto, onde qualquer chuva gera a tragédia de inundação. A Serra do Sambê, que contorna a cidade pelo Norte, tem seu encanto e uma vegetação de Mata Atlântica que ainda resiste.  Imagino que quando Darwin lá esteve na sua famosa vista ao Brasil, 200 anos atrás, viu outra coisa e muito se inspirou para a sua teoria de evolução das espécies. Lá nasceu, viveu e morreu o jornalista Astrojildo Pereira Duarte Silva (1890-1965), o fundador do PCB, em 1922, e seu primeiro presidente, expulso depois. Pois bem, hoje Rio Bonito é um quase desastre em termos políticos. A prefeita atual da cidade é a Solange do Amaral, aquela aliada nas falcatruas do Cunha, envolvendo propina. A cidade é parte da base eleitoral do deputado estadual Marcos Abraão, que nem merece comentários. Um desastre em termos de democracia e cidadania! Quem vai disputar a eleição municipal em outubro?  Sei lá!  Nos últimos anos o Ibase desenvolveu um trabalho em Rio Bonito, e outros 14 municípios da área de influência do Comperj, que resultou na criação de uma rede local de cidadania. Espero que algo diferente aconteça por lá, mas meu voto é ainda como cidadão do Rio de Janeiro.

No Rio – penso que o mesmo se passa nas grandes e médias cidades brasileiras – existem tramas em curso que vão acabar nos dando o dilema de escolher o de sempre, sem novidades reais. Serão provavelmente, muitos candidatos, mais do que reais propostas para a cidade. Tudo deverá ser decidido no segundo turno, entre os dois candidatos melhor colocados. Financiamento empresarial, que tudo distorce, deixou de ser legal. Mas alguém acredita que novas formas de financiamento ilícito não serão inventadas? E a questão mais importante: a agenda de cidade está posta na mesa para que a cidadania decida, pensando mais na cidade do que nas pequenas e corporativas agendas de candidatos, prometendo vantagens e favores para correligionários?

Não registro, no Rio ou em outros municípios, nenhum candidato ou força política levantando o debate da cidade como bem comum. Isto num momento em que os ventos políticos dominantes, no país e fora, voltam a priorizar uma agenda conservadora de mais liberalização, mais mercado, e menos público e regulação política, menos políticas para garantir direitos coletivos. O debate estratégico de resistência possível é resgatar a centralidade do comum na cidade para uma vida coletiva que faça sentido para todas e todos. Isto está presente nas lutas, em favelas, nas resistências a remoções, na luta por educação pública e saúde de qualidade, na luta por segurança pública como direito, na luta por mobilidade urbana para todo mundo, nos pontos de cultura e mídia alternativa. A lista é grande e inspiradora, basta olhar, querer e valorizar. São as sementes que vejo podendo anunciar outro amanhã para a cidade.

A incógnita que está no horizonte continuará incógnita enquanto não for decifrada com técnica, sem dúvida, mas, sobretudo, com imaginação, com esperança e determinação democrática, de direitos de cidadania, com nossa participação no antes, durante e após eleições. Ou seja, depende de nós mesmos mudar tal equação, ao seu modo bastante simples. Participemos desde já e exijamos o que não nos é revelado. Termino com a canção que se tornou o símbolo no combate à ditadura, de Geraldo Vandré. Penso que olhando para nossos lugares, nosso territórios locais, e para as possibilidades reais de ativismo cidadão que aí estão presentes, no aqui e agora, nosso engajamento pode começar a fazer a hora.

 

“Vem, vamos embora

Que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer”

Tradução »