Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho Curador do Ibase
É próprio do fazer sociológico a análise mais apurada da correlação de forças políticas criadoras das conjunturas, por mais retrógradas que sejam. Mas o “que fazer” de ativista é pensar e agir sempre para mudar as conjunturas com visão de futuro desejável, vendo onde incidir para torná-lo possível. Carrego em mim mesmo tal dilema. É sempre mais fácil tomar distância e fazer análise, a mais fundadamentada possível, sem nela incorporar o nosso imaginário de outro mundo, dos princípios e valores éticos que nos orientam, das opções estratégicas que pensamos serem necessárias para tanto. O fato é que este outro lado da reflexão, engajado, muda a própria análise e revela o compromisso que ela carrega. É um dilema? Sem dúvidas, é! Mas para que vale a ciência sem visão e compromisso ético com o futuro e com a busca de sua realização histórica a partir do aqui e agora?
Inspiro-me em Gramsci para definir o que considero ação cidadã de resistência e transformação. Nunca agimos nas condições que escolhemos, mas nas que nos são historicamente dadas, independentes de nós, fruto de ações passadas, das ações de todos e todas demais, e da correção de forças que movem as ações e as conjunturas históricas presentes. Tanto quanto conscientemente nos engajamos em ações individuais, no nosso cotidiano, como quando fazem parte de comunidades e movimentos sociais em que a nossa cidadania se expressa coletivamente, somos um bloco histórico de vontades/escolhas + circunstâncias dadas. Assim, sempre circunstâncias condicionam mas, ao mesmo tempo, a vontade e os desejos também são constitutivos e definidores da ação. Tendo esta perspectiva, penso que a cidadania deve tanto valorizar a melhor análise das circunstâncias como seus próprios desejos, valores e princípios éticos, imaginários mobilizadores para construir um futuro possível diferente. É da inter-relação entre estas duas dimensões que surge a visão e ação estratégica. Ela pode se revelar errada ou incapaz de transformar o presente, como pode criar caminho outro futuro, mas é só tal ação cidadã – bloco histórico – que será estratégica.
Mas aqui entra outra questão fundamental, os fundamentalismos. Por definição, qualquer fundamentalismo – religioso, ideológico, de “livre mercado”, de propriedade privada e mérito, colonial, racial, patriarcal, homofóbico, etc – é negador de análises, pois se orienta segundo “verdades” absolutas, totais e totalizadoras, que simplificam e levam a ações violentas, excludentes e dominadoras, desconsiderando conjunturas. Para os fundamentalismos, sejam de direita ou de esquerda, a realidade e a história não importam, pois a doutrina revelada e mitificada, religiosa ou ideológica, está acima dela. Contudo, os fundamentalismos, tendo sujeitos concretos como seus portadores e determinados a defendê-los, tornam-se parte da complexa realidade histórica e constituem as circunstâncias que não podemos ignorar e com as quais precisamos lidar. Como?
Venho pensando nestas questões diante da conjuntura brasileira e mundial atual, quando os fundamentalismos reacionários e até fascistas, de domínio capitalista com ideologia neoliberal globalizante, combinados com supremacia racial, machismo e xenofobia, parecem se impor e impedir de pensar estrategicamente alternativas. Claramente, só diagnosticar o mal que produzem não é suficiente, mas também não dá para aceitá-los como algo inevitável. Eles se fazem historicamente, de um dia após o outro, com rupturas, recuos e avanços. Portanto, assim como se impõem em determinadas circunstâncias podem ser derrotados em outras. A história não é linear, nem para um lado, nem para outro, ela é um fazer-se em zigue-zague e por saltos, um tanto quanto imprevisível, mas que é resultado de nossas contraditórias ações, fruto de visões e opões, de relações e circunstâncias (territórios, sociedades e tempos).
Aqui lembro a questão mais estratégica de meu ponto de vista: a disputa da própria idéia e método do fazer democracia nas diferentes conjunturas. Não é um ideal abstrato ou fundamentalista, mas é a disputa das condições de liberdade e participação para ter ideais e por eles poder lutar, nas diferentes circunstâncias históricas, por territórios, sociedades, culturas com perspectiva de igualdade na diversidade de povos do Planeta Terra, bem comum a todas e todos, sem discriminações. Como fazer isto? A única resposta possível é fazendo, não desistindo de lutar pelos valores e princípios éticos da humanidade e planeta compartidos, de todos os direitos humanos e da natureza para todas e todos, nas diferentes circunstâncias em movimento. Defino isto como luta por democracia ecossocial, inclusiva e sustentável ao mesmo tempo, planetária, vibrante em sua diversidade de culturas e povos.
Tive a oportunidade de ler, recentemente, uma emocionante autocrítica de Esteban Valenti, uruguaio, sobre a sua trajetória ideológica e política pessoal, para afirmar o que me parece essencial para quem crê e aposta na possibilidade da humanidade ser melhor. Em suas palavras (em tradução livre): “Aprendi que não existe uma resposta completa, total e totalizadora que explique todos os processos humanos e que definitiva e inescapavelmente nos levará à felicidade. Para ser de esquerda, para aspirar a um mundo mais justo, existe uma só condição irrenunciável, ser críticos, não perder o sentido da crítica, a arma mais poderosa que gerou a cultura humana para mudar as coisas e as ideias. A crítica (…) na política, no uso do poder, na ideologia, é a mais difícil das condições”.[i] Penso que a esta visão da importância da crítica na disputa de hegemonia democrática transformadora, vale a pena acrescentar uma afirmação de Eduardo Galeano: “Ou a democracia aprende a dizer a verdade e imediatamente começa a combater a mentira ou está condenada ela mesma a mentir para sempre” (em tradução livre).[ii]
São muitas as questões a apronfundar aqui como modo de analisar e agir na adversa conjuntura que enfrentamos, sem perder a esperança e a ousadia. Termino reafirmando que estamos diante de uma democracia totalmente ameaçada e perdendo sentido estratégico. A inversão disto depende de nós mesmos, do como exploramos em tal situação as possibilidades de ser cidadania ativa como prática “rebelde” de pensar, propor e agir com ousadia em busca de hegemonia democrática no amanhã, com sustentabilidade ecossocial, de cuidado, de convívio e de compartilhamento de bens e direitos entre todas e todos. Precisamos ter coragem em nos refazer como cidadania que faz diferença, sem medo de errar e ter que recomeçar.
[i] Esteban Valenti. Bitacora, Montevideu: Lunes 19 de agosto 2019, Año XVIII, nº798.
[ii] Eduardo Galeano ap. Adalid Contreta Baspineiro. “Los caminoa de la democracia enlas elecciones Bolivia 2019”.