Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

A conjuntura política em que estamos mergulhados dá espaço para que prosperem agendas no parlamento que, se aprovadas, vão destruir conquistas básicas no processo de construção de um Brasil mais democrático, cujo pressuposto é a busca do máximo de cidadania possível, sem discriminações. Sob a bandeira de “escola sem partido” está em debate uma proposta que destrói a luta de gerações para ter um sistema educacional que seja radicalmente público, acolhedor e inclusivo de todas as nossas crianças e adolescentes, um ambiente propício ao desenvolvimento de suas capacidades, sonhos e desejos, um espaço de convivência, trocas e aprendizados que fortaleçam suas identidades específicas, como sujeitos detentores dos mesmos direitos e responsabilidades cidadãs. 
A escola é um momento mágico na vida da gente. Trata-se de uma porta de entrada de crianças da família para a coletividade, para a pólis, para a cidadania. Lembro da minha própria infância, no interior de Erechim, no Rio Grande do Sul, numa pequena comunidade de agricultores familiares de origem polonesa. Minha primeira língua, até os seis anos, foi o polonês. Aprendi português na escola unidocente, a quatro quilômetros de casa, convivendo com coleguinhas e uma dedicada e amorosa professora, cujo nome nem lembro mais. Como era legal aquele ambiente, fora de casa. Tudo parecia um jogo, uma brincadeira. Claro, a gente aprontava ao ponto de ser levado a ficar de castigo, de joelhos sobre grãos de milho – parecia uma eternidade, mas acho que não passava de alguns minutos.
 
Desde pequenino fui bom em matemática. Na época havia um exame oral, com a presença de inspetor de educação da Prefeitura. No meu primeiro ano, o teste foi escrever no quadro negro de 1 a 10. Apesar de receber 10, no 8 mereci uma estrondosa gargalhada do inspetor e da professora. Fiz um 8 como se fosse de dois zeros, um sobre outro! A escola pública municipal era precária, mas fez uma enorme diferença na minha vida, pois foi aí que comecei a me inserir na cultura do Brasil e a escrever, coisa que guardo no fundo de minhas lembranças. Meu pai e minha mãe fizeram de tudo para dar aos nove filhos uma escola melhor. Na época, a meta deles era ginásio completo. Para isto, meu pai se desfez do que tinha naquele interior e nos transferimos para a periferia da cidade de Erechim, uma chácara com vacas, porcos e galinhas para garantir a subsistência familiar, mas somente uns dois quilômetros da escola primária até o científico [atual Ensino Médio]. Pessoalmente, no fim do primeiro ano de ginásio acabei num seminário capuchinho, onde fiquei até o início da faculdade de Filosofia. 
Relato tudo isto para tratar da agenda que o tal “centrão” dos oportunistas de ocasião, no esdrúxulo governo ilegítimo do Temer, vem pondo na mesa de negociações no Congresso Nacional. Sob a bandeira de “escola sem partido” estão querendo uma escola pública que atenta contra o aprendizado ser cidadão no Brasil, a prática da liberdade, a condição para aprender a ser livre. Um de seus alvos é tudo o que nosso maior educador, Paulo Freire, deixou como legado para o país. Com suas propostas de “educação como prática de liberdade” e “pedagogia do oprimido”, Paulo Freire foi fundamental para pautar a escola como questão de cidadania, acima de tudo. No final dos 50 e início dos 60, ainda no século passado, uma questão básica legal para ser considerado cidadão era ser alfabetizado. Analfabetos e analfabetas eram excluídos da prática da própria cidadania. Hoje até nos esquecemos de lembrar fato tão radicalmente antidemocrático em nossa história até algumas décadas atrás. Vale a pena trazer isto aqui porque a escola sempre foi e sempre será uma questão política de cidadania, de igualdade e liberdade na democracia. 

Afinal, de que estamos falando com a tal proposta de “escola sem partido”?

A “escola sem partido” não chega a ser uma proposta contra o sistema educacional, mas é, sem dúvida, um esforço de enquadrá-lo, de limitar o seu potencial para o avanço democrático, para que a cidadania de todos e todas seja a fonte fundamental instituinte e constituinte da democracia. Aliás, em que sentido a escola é partidarizada? Ela é partidária por ser obrigada a ensinar a importância da diversidade ética e de estudar o quanto a África e os povos indígenas, mais do que a Europa, são a fortaleza básica do povo brasileiro como síntese de uma amálgama, violento e de exclusões ao longo da história, mas real, está no nosso sangue e cultura? Ela é partidária por defender a diversidade de “cor” como direito de cidadania? Por botar em debate a diversidade de gêneros e de opções? Por insistir que cidadania supõe respeito à liberdade de cada uma e cada um? Que desigualdade social entre nós é algo explicável e não inevitável, como se fosse imposto como destino ou designío divino? A escola é partidária por ser laica, pública, não confessional? Afinal, de que estamos falando com a tal proposta de “escola sem partido”? Será a escola do partido de uns e não de outros? Precisamos ser claros a respeito de um ponto fundamental: não é possível uma sociedade sem partidos. Portanto, para entendê-la – tarefa essencial da escola – é necessário que os próprios partidos e o que eles propõem seja discutido livremente no ambiente mais adequado para isto, que é a própria escola. A escola aberta é uma ameaça por cumprir sua missão fundamental? 
Estamos diante de uma proposta de lei que quer tirar do sistema educacional uma tarefa essencial para sua própria existência numa democracia: espaço de aprendizagem do pensar livremente. Quer-se evitar que nossas crianças e adolescentes tenham oportunidade de serem iniciados em valores e princípios éticos fundamentais para a convivência humana, como a igualdade, a liberdade, a diversidade, a solidariedade e a participação política. Não é para todo mundo pensar igual ou segundo cartilhas de partidos, seja quais forem. Para as crianças e adolescentes, a escola é uma oportunidade de compartilhar um saber social acumulado, sem dúvida, mas trata-se, também, de algo ainda mais importante: poder dar espaço para a sua própria identidade e personalidade se afirmarem em sua plenitude. Isto só é possível se a escola criar ambientes de liberdade de pensar e agir, no respeito à diversidade, ao mesmo tempo em que permite o acesso a um conhecimento fundamental acumulado ao longo de gerações. A única proposta adequada e aceitável é a que vai no sentido de tornar a escola mais pública, democrática, um espaço de liberdade. Não é isto que está na versão fundamentalista e conservadora da “escola sem partido”, em discussão no Congresso.
 

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