Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Em minha caminhada diária no Parque do Flamengo, o nosso Aterro, ando mais atento do que de costume ao que se passa à minha volta. Com as más notícias diárias sobre perigos aqui e lá, pela cidade inteira, a gente começa a se preocupar com o que pode acontecer no espaço público. Isto mesmo, nos lugares sagrados comuns, desde ruas a praças, praias, entorno de lagoas, parques, jardins e florestas, teatros, cinemas e espaços culturais, até lugares dos equipamentos coletivos, como igrejas, órgãos públicos, escolas e hospitais. Lugares de convívio de todo mundo, de curtição da nossa diversidade e de praticar a plena liberdade do ir e vir, sem medo. Enfim, lugares centrais no bem comum de toda a cidadania que, por definição, é e deve ser o território de uma cidade, com seus dons naturais e com o que ao longo de gerações produzimos moldando-o, dando-lhe um toque humano e, no caso, carioca. E olha que nós, do Rio, nos orgulhamos do nosso território cidadão. O que se passa então?
Temos uma explosiva combinação de desigualdade social – radical segregação social espacialmente demarcada, que chega à intolerância – com segurança pública pensada como proteção de rico e repressão de pobre, negro em particular. Afinal, a melhor política que nossa segurança pública conseguiu produzir foi “ocupar” espaços da cidade com forças militares fortemente armadas e despreparadas para libertá-los e trazê-los à cidadania plena. No nome vem polícia de pacificação. Pacificar quem e o que, se se trata de polícia militar feita para reprimir violentamente pobres e excluídos e matar, se necessário for? Os casos de assassinatos de moradores em favelas, muitas crianças, só aumentam. Até quando suportaremos isto? Estamos sendo mortos como cidadania! Mas cadê a agenda social de enfrentamento radical e frontal da miséria, exclusão e desigualdade social? Até quando vamos ficar vendo o crescimento dos negócios em nossa cidade e a cidadania vindo a reboque, usufruindo de migalhas de uma economia feita par acumular riquezas, criar excluídos e destruir os bens comuns naturais e os criados, como a cidade?
Este é o pano de fundo. Por aí vamos a lugar nenhum, só mais violência, mais assassinatos de jovens e crianças, negras em particular. Segurança como direito só… para áreas de ricos e turistas. Aí nossos espaços coletivos, bens comuns, viram… O que mesmo? Terra do mais forte! Sou dos que acham que a presença da polícia militar num espaço público como o Parque do Flamengo aumenta o perigo em vez de trazer sentimento de segurança. Sou dos que tem medo da polícia que temos, herdeira de uma concepção autoritária e repressiva do tempo da ditadura, com prática de extorsões e subornos, de tortura, extermínios e engajamento em milícias nas horas de folga.
Mas tenho um sonho, sonho forte e mobilizador. De modo curto e simples, sonho com um Rio Cidadão, de plenitude da cidadania, para todo mundo, sem discriminações de qualquer espécie. Um Rio de Janeiro como bem comum, compartido entre todas e todos, da Zona Sul, Barra e Zona Norte, do polo histórico e do longínquo Oeste, de favelas e do asfalto, das periferias e do centro de poder. Precisamos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, como nos lembra a canção. Afinal, somos instituintes e constituintes em nosso poder de cidadãos e cidadãs. Podemos exercer o nosso poder para realizar sonhos de cidadania, fazer a cidade ser nossa, de todo mundo, sem medo e sem violência.
O sonho, como uma utopia, será mobilizador se for capaz de apontar outro futuro, feito por outro caminho, e, ao mesmo tempo, for radical crítica do presente. Sonhar de olhos acordados é se dar o direito da ousadia do pensar. Num certo sentido, não existe o impossível. O que a gente precisa é de imaginário mobilizador e com determinação precisamos criar as condições históricas para o que parece impossível se torne possível. A história está cheia de exemplos de cidadania sonhadora e determinada em sua ação política democrática. Trata-se de apostar em grandes ondas, em grandes movimentos mobilizadores de opinião pública e das forças vivas da cidadania, em sua exuberante diversidade. Sim, precisamos convencer-nos que está ao alcance de nossas mãos a possibilidade de mudança. Nada, absolutamente nada, vai acontecer sem nossa vontade engajada.
Aqui se esboça uma gigante tarefa coletiva de ligar o sonho à realidade. Primeiro, muita gente – a maioria, na verdade de uma democracia – precisa compartir o sonho. Aí está a primeira tarefa. Todos e todas, mas em particular artistas, tanto os consagrados como os populares, e os produtores culturais em geral precisam tornar o projeto da cidade bem comum e cidadão como o centro de sua produção simbólica, que organiza o sonho coletivo. Os comunicadores e educadores precisam difundir isto no diálogo, na busca de consensos em torno de ideias força do sonho. Intelectuais precisam argumentar para ridicularizar os recalcitrantes, descrentes e, em particular, os opositores ao sonho, pois o sonho cidadão afeta seus interesses e negócios particulares.
Uma monumental tarefa é superar o individualismo e o sucesso individual como medida de felicidade. Como humanos em nossa vibrante diversidade, precisamos voltar a pôr no centro o cuidado coletivo com tudo, com nossas crianças e velhos, com os desvalidos e tratados como desiguais, com nossa cidade coletiva, com nossa cultura e identidade, com os bens que produzimos e usamos. Cuidado implica em compartilhamento, pois é parte da cidadania que o comum permaneça comum, de todos, e não seja privatizado, como certas ruas, certos espaços públicos, até políticas e recursos públicos na realidade de hoje. Cuidado e compartilhamento tem sentido se praticarmos o respeito da convivência coletiva de nossa diversidade. Afinal, a diferença, longe de ser problema, é nossa força coletiva.
Muitas outras tarefas se somam a isto. Mas precisamos começar, no aqui e agora, para resgatar nossa cidade, o Rio de Janeiro, de um processo violentador de privatização de tudo, de cidade que está sendo moldada para negócios globais e não para nós, cidadania daqui. Nosso endereço é aqui e é aqui que queremos viver como coletividade de bem consigo mesma. Pensemos em tudo isto antes que a conjuntura política imposta nos leve para outro lugar. Afinal, as eleições – grande arma democrática – se avizinham. Podemos mudar, mas sem sonho coletivo de cidadania e do possível não dá!