Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Passada a eleição, com expressiva vitória de Jair Bolsonaro, cabe encarar a nova realidade criada: venceu uma proposta mais restritiva da centralidade da cidadania e da igualdade de direitos como os pilares incontornáveis da democracia. Mas nós, os(as) derrotados(as), também demonstramos força relativa capaz de representar uma resistência democrática que não poderá ser ignorada ou subjugada facilmente. O fato é que, por mais importante que seja uma eleição no processo democrático, a história não acabou neste dia, 28 de outubro de 2018, nos 30 anos da Constituição de 1988. As condições para o ativismo cidadão – por sinal, estigmatizado pelo vencedor – mudaram e vão exigir muita capacidade de reinvenção e ousadia de nossa parte nos meses e anos vindouros. Será difícil? Não tenho dúvidas! O fato é que, mesmo tensionada, a democracia está viva e é ela que está a exigir imaginação e criatividade, coragem e persistência, ousadia e determinação.
O que passou, passou. Temos que encarar o que está por vir, com muitas incertezas no momento atual. Apesar de previsões do pior, o tamanho do estrago depende do quanto estaremos preparados para enfrentar seus impactos. Olhar para trás, para erros e fraquezas, é necessário mas não nos apontará o caminho para o futuro. O amanhã democrático, como um rio, está por chegar e muitas águas ainda vão rolar debaixo da ponte. Muita coisa, como a própria força das águas, escapa ao controle nosso e deles. A única quase certeza é a tempestade que se armou e pode ser altamente destrutiva como a força de suas águas que escoam para o mar, algo sempre presente como possibilidade no nosso dia a dia. Essa imagem me remete à questão fundamental da resiliência cidadã que, com o seu ativismo, é a poderosa força instituinte e constituinte das democracias.
Amanhã será um dia de ressaca, talvez o primeiro de muitos dias. Mas não podemos esperar sofrendo. Devemos começar a pensar como nos encontramos aqui: um país dividido mais do que em qualquer outra eleição dos últimos 30 anos da Constituição de 1988. Trata-se de uma divisão mais profunda e enraizada em nosso seio de cidadania, para além dos blocos eleitorais. Experimentamos, de forma forte e abertamente até, o ódio e a intolerância com as nossas diferenças e nossas diversidades como povo. Descobrimos que convivemos com forte autoritarismo e violência nas relações cotidianas em todo lugar, com estruturais racismos e machismos que sabíamos existirem, mas não com tal virulência. E, sobretudo, descobrimos como apelos ao uso da força para enfrentar todos estes problemas de forma excludente podem mover multidões. Como tais paixões profundamente contraditórias e destrutivas, mais que razões e direitos à liberdade do pensar em democracias, moverão nosso cotidiano daqui para frente? Como lidaremos com realidade tão angustiante e incontornável? Quantos dramas e sofrimentos serão parte de um espaço público tensionado?
A fotografia de hoje, com grandes blocos eleitorais, precisa ser radiografada com lentes mais precisas. Estamos diante de um novo ponto de partida. A questão mais importante é olhar com atenção e buscar entender como tais blocos agirão e se renovarão daqui para frente. Ou seja, entender a nós mesmos e a eles e elas, com quem convivemos como destino comum. E, acima disso, precisamos encarar desde aqui e agora a renovação de nosso imaginário radicalmente democrático e libertador, capaz de disputar hegemonia com nossas irmãs e irmãos, nesse contexto difícil. Estou aqui me referindo à tarefa urgente e deficitária que é a renovação e disputa no espaço público da sociedade civil com um ideário e valores democráticos radicais, de mais liberdade e de mais direitos iguais, de cidadania ativa em nossa diversidade e disputa como força instituinte e constituinte de outro Brasil e outro mundo possível. Essa eleição nos revelou um grande déficit de nossa parte. Não sabemos defender ideias e valores de futuro, com emoção e convencimento, usando de modo profundamente democrático as possibilidades das novas tecnologias de comunicação e informação. Ficamos defendendo um passado que passou e já é incapaz de responder aos desafios de uma sociedade profundamente partida e ansiosa de escrever um novo futuro. Aliás, futuro obscuro, angustiante, incerto. Precisamos disputar um sentido de futuro melhor do que o vivido e passado até aqui.
Estamos diante do desafio de “olhar menos para o Planalto e mais para a planície”, como bem definiu o saudoso Betinho lá nos anos 80 do século passado. Vivemos aqui na planície, mesmo montanhosa, dos nossos territórios de cidadania, cidades e campos. Claro que olhar para nosso umbigo não basta, mas é a partir daqui que podemos olhar o Brasil, a região e o mundo. Os problemas e as questões maiores têm raízes aqui, nos nossos lugares, com especificidades que conseguimos viver e definir. Por sinal, o poder instituinte e constituinte da cidadania só podemos exercê-lo a partir de nossos lugares que, ao se agregar e articular organicamente, geram movimentos como grandes ondas irresistíveis sobre círculos mais amplos, até o Planeta como um todo.
Termino lembrando aqui o que já venho pensando e propondo. A hora é de reinventar e democratizar a democracia e a nós mesmos, com muita reflexão estratégica, ousada e corajosa, com capacidade de gestar vontade coletiva – bloco histórico, na expressão de Gramsci – libertadora do pensamento e ação, de alto poder transformadora. Na nossa agenda de renovação radical precisamos pensar para além dos direitos da cidadania, apesar de partirmos deles. Precisamos pensar em direitos da natureza, sendo nós parte de sua integridade e dependentes dela. Trata-se de, nesta adversidade toda, ousar pensar em democracia ecossocial, de defesa de direitos da humanidade e do Planeta, com um todo ecossocial. Isso está muito além, muitíssimo, dos vitoriosos de hoje. Mas, vale a pena afirmar, a porta de saída e, sobretudo, uma busca de direção e sentido urgente diante do possível neoliberalismo exacerbado e autoritário que nos pode levar à barbárie. Há esperança, mas cabe a nós alimentá-la.