Por Saul Leblon
texto originalmente publicado na Carta Maior

Visão da Praça Tahrir. Crédito: Ramy Raoof/Flickr.
A Praça Tahrir, no centro do Cairo, sugere uma dessas rotatórias  inóspitas, como tantas outras, destinadas a ordenar o fluxo do trânsito  nas grandes metrópoles subdesenvolvidas, pouco ou nada pensadas para o  convívio humano. Mas desde fevereiro deste ano, quando foi palco de 18  dias consecutivos de protestos gigantescos que derrubaram o ditador  amigo das potências, Hosni Mubarak, a praça Tahrir ingressou  definitivamente no panteão dos símbolos libertários do nosso tempo.
Na sua textura inóspita o povo egípcio plantou uma das mais vigorosas  sementes da primavera política que sacode o norte africano e todo o  Oriente Médio. Desde a última 6ª feira, a semeadura tem sido regada a  sangue outra vez (veja as cenas).
Novos confrontos, a partir de Tahrir, espalham-se por todo o país com  um saldo devastador nas últimas 72 horas: 33 mortos pela repressão do  Exército; 1.500 feridos e a renúncia do gabinete civil que desde a queda  de Mubarak ordena a transição democrática, subordinado à mão dura  militar.
A uma semana das eleições parlamentares, a sociedade egípcia está farta  da tutela que pretende se sobrepor à nova institucionalidade,  esvaziando-a na prática, a exemplo do que os mercados financeiros fazem  com as democracias maduras de uma Europa em transe. No Egito, o  definhamento opera pelo canal do adiamento das eleições presidenciais;  na zona do euro, com a captura do Estado pela lógica financeiro,  tornando ornamental a rotatividade do poder.
A principal singularidade egípcia está na eficácia das grandes  mobilizações de massa. Armadas de alvos claros, cirúrgicos e avessos às  tergiversações conservadoras — mas permeados de intensa capilaridade  junto a organizações civis e partidos políticos, ao contrário do mito da  ‘revolução digital’ — , elas arremetem contra o despotismo de plantão  com uma contundência pavorosa para os seus ocupantes. Foi assim que  Tahrir derrubou Mubarak em 11 de fevereiro, após 18 dias de protestos  que custaram 300 mortos e cinco mil feridos.
É assim que ela se volta agora contra o cabresto militar, unificando  partidos e vozes em uma exigência clara, incontornável, de rápida  aderência popular: fim da tutela –ou como se ouve em Tahrir,  ‘deixem-nos respirar; deixem-nos viver’. A articulação e a objetividade  das jornadas nascidas na praça política mais eficaz do mundo talvez  tenham algo a ensinar aos indignados do resto do planeta, ainda carentes  da mesma habilidade para traduzir o descontentamento social em alvos  progressivos, práticos, de precisão egípcia.
																					

