Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
O processo histórico tem claros condicionantes, grandes movimentos tectônicos de relações, processos e estruturas ecossociais, contraditórios e interdependentes, sempre em movimento, heranças vivas de ações de gerações passadas e presentes, materializadas nos territórios e nos tempos que vivemos. O nosso curto tempo histórico tem esta herança maior que nós mesmos, nosso meio imediato, a sociedade de que fazemos parte, nossas formas de nos organizarmos para produzir e reproduzir a vida e ir levando. Porém, nada, absolutamente nada, está acabado ou é imutável. A vida se faz e refaz, até se destrói, num movimento contínuo. Nós somos a vida humana neste tempo histórico, a seu modo conturbado e extremamente contraditório. Do nosso jeito, dentro de nossas possibilidades, opções e limites, vamos fazendo história no chão concreto do dia a dia, entre sujeitos coletivos sociais, confrontando-se e disputando sentidos e rumos, lá onde estamos, por opção ou por falta de opção, sempre condicionados pela humanidade inteira com quem compartimos o Planeta Terra. O destino é viver em coletividade e completar a vida com a própria morte, mas como e quanto tempo depende do modo como nos organizamos para viver.
Essa longa introdução um tanto filosófica e sociológica é fundamental para deixar claro meu ponto de vista analítico da atual situação brasileira, sob a truculência de um governo de extrema direita e com uma viseira cavernosa sobre os valores e sentidos do viver em coletividade e, acima de tudo, sobre quem pode ou não viver. Dito isso, afirmo e reafirmo que é possível, sim, encontrar uma forma de nos organizar melhor para dar lugar para todos, em nossa maravilhosa diversidade, nos territórios e sociedades concretas em que vivemos, com igualdade incondicional de sermos todos humanos, num maravilhoso planeta bem comum de todos e todas, não importa se no Sul ou Norte, Leste ou Oeste, ou no Brasil, que nos querem negar os “donos” do poder do momento.
Voltando ao chão concreto do cotidiano, vejo grandes sinais de esperança aflorando das ruas. Parece até que nossa primavera social está chegando com suas luzes e cores, contornando o inverno político de um governo obscurantista destrutivo de direitos e da democracia. A esperança brota exatamente de onde ela tem, por questão de vida mesmo, mais poder construtivo: as juventudes em sua explosão de vida. Ela veio com tanta força que até chamou para a rua os que deram vitória eleitoral para o Bolsonaro, mas que não tem e nunca tiveram inspiração e nem organicidade como movimento de cidadania.
Por mais atento às conjunturas e por mais experiente em termos de análise social, a gente nunca sabe onde as contradições escancaram. Não foi na economia indo para trás, com milhões jogados no desemprego, informalidade e desalento. Nem foi a mais destrutiva agenda de reformas econômicas inspiradas no fundamentalismo neoliberal sem sustentação teórica e prática do ministro Paulo Guedes. Nem na violência institucional propostas pelo ministro Sergio Moro e na liberação de armas do presidente Bolsonaro como política de (in)segurança total nos levaram para as ruas. Na eloquente definição da ativista catalã, Clara Valverde, estamos diante de uma aplicação prática pelo neoliberalismo da “necropolítica – deixa morrer pessoas que não são rentáveis”*.
Mas não foi este o estopim que levou a nossa juventude, em sua maravilhosa diversidade, para as ruas. Pelo contrário, foi no campo político-cultural, aquele que o componente mais ideológico e moralista do “bando” no poder define como sua “guerra cultural”, que irromperam as contradições: a educação pública. O ataque ao que até aqui tem sido visto como possibilidade de emancipação social e econômica provocou a maravilhosa irrupção da cidadania jovem nas ruas, puxado por estudantes e professores, com simpatia e apoio de amplos setores e gerações. O 15 de maio de 2019, repicado no dia 30, é um marco fundamental. Daqui para diante, temos o rebentar da onda conservadora e autoritária na praia. Muitos estragos ainda vão acontecer, talvez mais do que desejável. Mas a cidadania ativa mostrou a sua cara e seu poder. Outra história pode ser desenhada. Claro, num embate democrático, já que chamamos os apoiadores do regime expresso por Bolsonaro para a rua, território de cidadania em disputa. Agora estamos em igualdade de condições novamente. Podemos perder ou ganhar. Mas em democracias nunca existe vitória ou derrota definitiva. Ela é, por definição, um virtuoso processo de construção na luta – desde que fascismos não se estabeleçam com toda a sua violência destrutiva sobre uma ou duas gerações. A possibilidade de mudar sempre é uma hipótese a apostar do ponto de vista da cidadania.
Os desafios são monumentais. No mundo inteiro estamos sendo ameaçados pelo avanço da barbárie. Não vou entrar aqui no diagnóstico de sua força e formas, dado o curto espaço de uma crônica. O importante é ter presente que vivemos um momento de enormes adversidades internas e externas, com os extremismos, xenofobias e intolerâncias num crescendo, apoiados em formas autoritárias de inspiração fascista se avolumando no mundo inteiro. E eles ganham espaço com representações nas instituições, como vem de acontecer nas eleições parlamentares na União Europeia.
É do chão da cidadania, das sociedades concretas, das cidades, das ruas, das zonas periféricas e segregadas, dos territórios ameaçados pelo agronegócio e pela mineração, que as ameaças de desconstrução de direitos e da própria democracia podem criar densidade e poder irresistível. Mas onde começa a gente nunca sabe. É emblemático que tenha surgido do seio dos estudantes, juventudes que tem tudo a conquistar e pouco a perder, no imediato. Precisamos nos inspirar nesta capacidade e vigor de transformação da resistência em ação cidadã.
Para agir com determinação nada como a inspiração da canção: “Amanhã vai ser outro dia…” e ele poderá ser melhor. É assim, com tal inspiração e cimento agregador, que processos cidadãos de transformação constroem sociedades melhores. Nosso novo momento está começando.
Rio, 04/06/2019