Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Só falta construir muros na cidade do Rio, pois a segregação é uma realidade cruel. Ser pobre, negro(a), indígena, ou tudo isto misturado, é estar de um lado, nos morros, nas áreas populares, na periferia, perto e ao mesmo tempo distante de tudo, apartado na cidade que, no entanto, é de todos e todas. No outro lado, no asfalto, na Zona Sul e suas praias, branco(a)s de muitos matizes, mais rico(a)s, de “classe média” ou viradore(a)s remediado(a)s estão os e as que se consideram “dono(a)s” da cidade, com direito de definir áreas exclusivas para si e com poder para subjugar governantes, representantes políticos, polícias e políticas públicas, tentando fazer tudo funcionar ao seu favor. Basta olhar o mapa da cidade e ver como tudo opera segregando, reproduzindo no território a lógica de negação de direitos e de cidadania para grandes maiorias.
As formas e as manifestações da segregação variam. Podem ser sutis ou escancaradas. Todas, no entanto, são cruéis, pois carregadas de desprezo – ódio até – e muita violência, tanto simbólica como física, com porretes, balas e mortes. Como ela está estruturalmente implantada, funcionando como a lógica organizativa das relações sociais no trabalho, na escola e na universidade, na igreja e no clube, nos meios de transporte, na mídia, nos espaços de lazer e de cultura, nas praias e ruas, na casa da gente, a segregação é única e múltipla ao mesmo tempo. Como modo de ser e viver de nossa sociedade, acompanha os humores da conjuntura e se reproduz persistentemente na história.
O que se passou no Rio no fim de semana de final de inverno e início de primavera não é algo para nos orgulharmos de ser parte desta bela cidade do Rio de Janeiro. Tivemos cenas de roubo e arrastões nas praias e Zona Sul, praticados por jovens de “pele escura”, e tivemos cenas de violência de trogloditas “de pele branca” que se consideram superiores e com direito de fazer justiça com as próprias mãos. E a polícia só observando. Se não vivesse no Rio diria que estava diante de uma cena de pobres refugiados e imigrantes com suas crianças, tentando asilo na velha Europa em sua dignidade de seres humanos, diante dos que não os querem receber de jeito nenhum, na Hungria ou na Croácia.
Por quê? Será que não dá para nos reconhecermos mutuamente com detentores dos mesmos direitos e das mesmas responsabilidades, na qualidade igual de cidadãs e cidadãos da mesma cidade? Comportamentos antissociais ninguém quer e nem suporta. Mas não dá para reconhecer como legítimas ou admitir como inevitáveis cenas de justiça pelas próprias mãos. Nem aprofundar a segregação e até privatização do território urbano, como certas associações de moradores já faziam e outras começam a fazer. Ao invés de nos armar e criar muros, reais ou simbólicos, não seria melhor ver onde estamos errando como moradores e moradoras da mesma cidade, compartindo o mesmo bem comum?
Claro, temos uma questão histórica ainda não resolvida. Herdeiros de uma sociedade escravocrata, nunca aceitamos compartir bens e riquezas que, no entanto, são fruto do trabalho coletivo de gerações e, portanto, de algum modo bem comum. Temos algo profundamente enraizado entre nós e causa das maiores mazelas e desigualdades sociais que são os tais “direitos adquiridos”. Eles nada têm de direitos, pois são “privilégios de classe” e, como todos os privilégios, operam como leis pétreas de desigualdade que nada pode mudar. Reproduzimos e atualizamos relações, estruturas e processos sociais baseados em “direitos adquiridos”, não importando se o foram com usurpação, domínio, exploração e, mesmo, morte de muitos.
Isto parece distante? Não, não é! Está presente hoje, visível no nosso cotidiano. Se a gente fizesse uma devassa na origem da apropriação do território da cidade do Rio e Região Metropolinatana veríamos a lógica da usurpação pelo mais forte do melhor, virado direito, e a condenação dos mais fracos a viver no que sobra, na sua periferia e, mais, sendo sempre ameaçado de remoção. Funciona assim há 450 anos em nossa cidade, contra os índios donos do lugar no início e, ao longo da história, contra escravos e pobres, seus descendentes… até hoje! Agora mesmo, em preparação da cidade para os “negócios” olímpicos, estamos removendo gente e criando infraestruturas para o bem estar dos que ficam. Com dinheiro público!
A polícia, que deveria garantir segurança, pelo seu modo de atuação segrega. Ela “ocupa” partes de territórios de favelas ao invés de libertá-los e integrá-los à cidadania plena. Até parece que estamos falando de um território inimigo – de fato é assim que as favelas “ocupadas” para pacificar são definidas. Esta polícia limita a mobilidade de jovens das favelas e periferias, especialmente negros, em nome da segurança. Segurança de quem mesmo? Com que critério? De cor? De modo de se vestir? Do dinheiro que carregam? Segurança cidadã dos jovens negros e pobres, que buscam lazer na praia de domingo ensolarado, certamente não é! No meu modo de ver, a polícia tem funcionado como parte do problema e não da solução. Ela estimula a intolerância dos que se sentem segredados e discriminados por causa de sua condição. O passo para a violência começa aí.
Os governos locais, com suas políticas subservientes aos interesses e forças mais interessadas na taxa de seus lucros do que no bem estar cidadão da coletividade, parecem dar as costas para a complexa realidade do território. Basta ver o sistema de transporte. Investe-se para facilitar a vida na Zona Sul e Barra e não o direito de mobilidade de todo mundo. Basta ver as linhas de BRTs e metrô, com os gigantescos investimentos em curso, em comparação com a precariedade dos trens que servem a Zona Norte, Oeste e Baixada. Ou então, é só comparar o que se gasta para uma cidade para os carros individuais e o que se investe em sistema de mobilidade coletiva. Será que as concessões feitas por consórcios privados de ônibus é para um transporte eficiente de milhões ou para o lucro dos empresários envolvidos? E o que dizer do Porto Maravilha? Maravilha para quem, Sr. Prefeito? As obras no velho porto são um projeto de gentrificação extrema, de remoção e de preparação de um território urbano nobre para a especulação imobiliária sem controle. A criação de uma Dubai tupiniquim é uma descarada segregação. Depois a gente não quer que o povo se indigne e se revolte!
Mas o pior mesmo é o senso comum que admite e alimenta o racismo, a discriminação, a segregação e até mesmo a violência. Isto ficou mais forte neste momento de certa desagregação política e econômica do Brasil como um todo. O clima é propício para intolerância a céu aberto, como fenômeno coletivo. Estão saindo do armário esqueletos preconceituosos que pareciam superados. Em parte, a grande mídia, sobretudo de televisão, alimentou tal irrupção de ódio e ressentimento. Agora que sentimentos e visões carregadas de discriminação, intolerância e violência se sentem legitimados, pela desagregação reinante, o problema mudou de escala.
O momento é de resistir, de fazer trincheiras cidadãs para impedir o pior. As poucas conquistas recentes em termos de diversidade na igualdade estão ameaçadas. Reconheçamos que temos segregação e que ela está profundamente enraizada entre nós. Mas não alimentemos a intolerância, seja qual for. Recuperemos o melhor do ideário mobilizador de cidadania, de direitos, liberdade, igualdade na diferença, para todos e todas, sem discriminações, como modo de resistir e, mais, de inverter a onda desagregadora em que estamos mergulhados. Nós cariocas de muitos costados, que amamos o Rio, brademos sem cansar que esta cidade só tem sentido se compartilhada igualmente. Afinal, existem milhares de maneiras de ser cariocas, unidos em nossa diversidade.