Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Vivemos no Brasil uma situação institucional totalmente desfigurada pelo golpe do impeachment. A agressão sistemática aos direitos sociais, territoriais e ambientais, com o esvaziamento e até desmonte das políticas criadas para implementá-los, mais todo o arsenal das políticas de ajuste neoliberal, revelam a construção de uma nova arquitetura do próprio poder estatal em sua integridade (executivo, político e judiciário). O conjunto de mudanças diretas no texto constitucional através de PECs, como a que define o congelamento de recursos para a área social, a pretendida Reforma da Previdência, as muitas alterações feitas através de projetos de lei e da avalanche de medidas provisórias, especialmente em terno aos comuns, como terra e meio ambiente, são mais do que prioridades de políticas de um governo golpista, provisório por definição, pois existe apenas para completar o mandato da eleita presidenta Dilma.
Olhando isto pelo lado dos direitos de cidadania, numa democracia que possa merecer tal nome, e associando tudo às políticas econômicas e financeiras neoliberais de ajuste, desregulação e desestatização postas em prática, é a ditadura do “livre mercado” que está sendo erigida como base institucional e constitucional do Brasil. Sem nenhuma legitimidade conquistada nas urnas – como il faut numa democracia – o Governo Temer agride a integridade da Constituição de 1988. Institui uma espécie de fascismo ao arrepio da lei, mas formalmente democrático. Conta com maioria no Congresso de bancadas corporativas e corruptas, formadas pela mercantilização da política e fidelidade dos políticos aos financiadores, e com complacência e, até, cumplicidade do Poder Judiciário.
O estrago está feito, a nossa democracia não é mais a mesma. O pacto costurado no período de transição e que se consolidou no processo constituinte gerou uma constituição que visou regular e democratizar o desenvolvimento econômico selvagem promovido pela ditadura militar. É preciso ser claro a respeito disto, ver os avanços em meio aos entulhos. A chamada Carta Magna do Brasil não mudou a natureza do desenvolvimento capitalista – propriedade privada e acumulação – mas introduziu condicionalidades cidadãs e sociais de forma constitucional. Ou seja, a Constituição de 1988 reconheceu e ampliou a cidadania política, manteve um pilar econômico, basicamente a mesma estrutura e direitos dos detentores de bens e capitais, e criou ao seu lado, como contrapeso, um pilar de direitos sociais de cidadania. O frágil equilíbrio – mas que permitiu importantes avanços em políticas públicas no Brasil – institucionalizou o “pacto conciliador” como forma de disputa democrática e alimentou a governabilidade de coalizão partidária, com fraca organicidade política. A Constituição conquistada, contraditória, mas legítima, foi isto. Agora, o governo golpista e seus asseclas estão quebrando o pilar dos direitos sociais de cidadania. Politicamente, o pacto democrático instituinte da Constituição foi rompido pelo golpe.
Penso que é fundamental reconhecer esta questão e tirar dela as conseqüências necessárias. Estamos diante de uma substancial mudança na própria questão democrática. Sabíamos dos limites existentes na Constituição de 1988 para incrementar mudanças estruturais na própria base da estrutura econômica e social e avançar nos processos de democracia participativa. Mas muitas questões fundamentais emergiram na agenda pública democrática e impactaram muitas políticas, permitindo construir ao menos um manto protetor social e econômico mínimo. Agora, nem isto.
Os impactos sociais da ruptura do pacto constitucional já estão escancarados no brutal desemprego e na volta da economia informal precária, nas pessoas jogadas nas ruas, nos projetos adiados e na falta de perspectivas, nos hospitais e escolas em que faltam tudo, na violência como norma de convívio social e na militarização crescente, no recrudescimento do machismo, do racismo, da intolerância e do ódio. O tecido social está esgarçado. Ao mesmo tempo, há uma crise no sistema federativo, pela perda de capacidade fiscal e orçamentária dos Estados e municípios. A democracia perde capacidade e legitimidade no seio da sociedade, a política e os políticos estão totalmente desacreditados.
A política, como bem comum de toda a cidadania e espaço livre vital de expressão, de participação e luta, é essencial na democracia. Como recuperá-la para dar vitalidade e legitimidade para a democracia diante da ruptura constitucional sorrateira realizada? Esta é uma questão que devemos analisar em nossas trincheiras de resistência. Para além das conjunturas imediatas, que a luta não nos permite ignorar, temos que construir uma perspectiva estratégica de restauração democrática. Isto implica em reelaborar e disputar um imaginário democrático de princípios e valores éticos, de liberdade e participação, de igualdade na diversidade, de solidariedade e convivência, de cuidado entre nós e com a natureza, de tolerância e paz. Precisamos elaborar ao mesmo tempo as bases econômicas, sociais e culturais de uma perspectiva de democracia substantiva, capaz de enveredar por um caminho virtuoso de transição para outro Brasil. Trata-se de imaginário com capacidade mobilizadora para o longo processo de disputa com proposta de caminhos novos ao país, transformadores da cultura e da sociedade, da economia e do poder, da nossa inserção cidadã numa emergente civilização planetária.
Concluo afirmando que não vejo, no longo prazo, saída que não seja uma profunda restauração democrática, condição para restabelecer direitos e cidadania plena, com as instâncias do Estado, nos três poderes, respondendo à cidadania acima do mercado e da economia. Para isto, precisamos trabalhar desde aqui e agora no sentido de tornar viável politicamente o estabelecimento de um novo pacto constitucional democrático como condição incontornável no caminho. É difícil? Sem dúvida! A tarefa é ter ousadia e tornar possível o que parece impossível.
Rio, 16/10/2017