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Rio de Janeiro tem seus dias de Mississippi

Leia abaixo o artigo de Dida Figueiredo sobre a morte do menino Juan, de 11 anos, crime que chocou o Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, goddam!
Dida Figueiredo
pesquisadora do Ibase
Apenas tente fazer o seu melhor
Levante-se para ser contado junto com todos os demais
Para que todos saibam sobre Mississippi goddam
(Nina Simone)

Levantemo-nos para que todos e todas saibam sobre o Rio de Janeiro. Saiamos de nossas cadeiras e de frente de nossas TVs. Não deixemos que Juan se torne mais uma assunto para ser tratado na mesa de bar. Toda vida importa. Toda vida é irrecuperável. O imenso número de mortes em confrontos policiais todos os dias na cidade do Rio de Janeiro não pode nos paralisar, nem anestesiar.
Juan tinha apenas 11 anos e estava voltando para casa quando foi baleado, juntamente com seu irmão Wesley, de 14 anos, e o jovem Wanderson dos Santos de Assis, de 19. Eles resistiram e foram levados para o hospital. Juan, não. Por isso, teve seu corpo escondido e jogado em um rio. Sua família e a principal testemunha de seu assassinato estão em programas de proteção a testemunhas. Os suspeitos do crime são policiais militares.
Addie M. Collins, Cynthia Wesley, Carole Robertson e Denise McNair tinham entre 11 e 14 anos quando foram mortas por uma bomba colocada numa igreja do Alabama por um membro da Ku Klux Klan. Foi a morte delas e do ativista direitos civis negros Medgar Evers por um membro de um outro grupo de supremacia branca que inspirou Nina Simone a compor Mississippi Goddam, um hino do movimento pela igualdade racial nos Estados Unidos.
Cinco crianças vítimas da violência e da intolerância. Não por coincidência, todas negras. No Brasil, morrem por causas violentas proporcionalmente 77,8% mais jovens negros do que brancos (Mapa da Violência, 2011).
Quando me deparo com casos como esse (e não são raros), sinto minha voz falhar. Como ativista e como acadêmica, trabalho e estudo para a defesa e promoção de direitos humanos. Mas, essa crueza da realidade, expressa nas inúmeras mortes violentas, na vida ceifada de milhares de nossas crianças (e adultos), faz todo o discurso de direitos humanos parecer vazio, uma mera retórica edificada para acalmar nossa consciência.
Afirmar que os direitos humanos são universais quando em toda parte o que mais se vê são violações a esses direitos e propalar que são indivisíveis e interdependentes quando a todo momento vemos escolhas feitas a partir do direcionamento político vigente em favor de direitos civis e políticos ou de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (descas) aparenta a adesão a uma retórica facilmente desmentível – que jamais contribuiria para a formação de cidadãos/as conscientes e atuantes.
É preciso no entanto respirar fundo e ver que se hoje podemos identificar as violações e as vítimas, e lutar para que exista alguma reparação, isso se dá justamente porque ao longo de inúmeros embates sociais e históricos foram sendo construídas as concepções que hoje são lidas por nós como “direitos humanos”. É verdade que os “Direitos humanos” não evitaram a morte de Juan, nem de milhares de outras crianças, adolescentes, adultos e adultas mortos todos os anos no Brasil em condições similares.
No entanto, o discurso e as ações (judiciais ou não) embasadas nesses direitos ainda são os melhores instrumentos disponíveis atualmente para promover o respeito à dignidade humana.
Porém, é preciso estarmos atentos e vigilantes. Esses direitos nunca serão suficientes se nos silenciarmos, se nos deixarmos levar pela incredulidade e permitirmos que as mortes e violações diárias se tornem apenas mais um dos fatídicos assuntos de noticiários repletos de sangue e dor. Precisamos estar a postos, precisamos nos pôr a pensar, precisamos remexer em nossas consciências para identificarmos como podemos assegurar condições de segurança e vida digna que permitam o desenvolvimento de uma sociedade livre da miséria. Da miséria de ter suas crianças mortas por aqueles que deviam protegê-la, da miséria de ter sua juventude negra (e branca, ainda que em menor número) exterminada, da miséria de ter um apartheid social não declarado mas cada dia mais engendrado por políticas públicas excludentes que visam o progressos para uns (poucos) e a perpetuação das violações de direitos para outros (muitos).
Um Brasil desenvolvido é um país no qual os direitos sejam respeitados e fatos como esse sejam apenas uma triste memória histórica. Ainda estamos a muitas léguas desse Brasil desenvolvido, entretanto, só cada um e todos juntos podem criar (e exigir do Poder Público) sua realização.

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